O Monólogo Interior1

O monólogo interior é uma técnica literária que trata de reproduzir os mecanismos do pensamento no texto. Caracteriza-se por transcorrer na mente da personagem, como se o “eu” falasse a si próprio. Daí considerar-se o monólogo interior, um diálogo; visto que subentende a presença de um interlocutor, “o tu” (com quem se fala), ou seja, “o outro”. Já por aí se vê, portanto, que teremos uma personagem desdobrada em duas entidades mentais: “o eu e o tu”, ou “o eu e o outro”, que trocam idéias ou impressões, confrontam-se, discutem e tentam se entender como pessoas diferentes. Se há um “eu” na fala da personagem, tem de haver também um “tu”, e esse diálogo pode ocorrer com ela mesma:

 

Como foi mesquinha a minha conduta!” Exclamou ela, “eu que me orgulhava tanto do meu discernimento, da minha habilidade! Eu que tantas vezes desdenhei a generosa candura de minha irmã [...]. Como é humilhante esta descoberta! Mas como é justa esta humilhação! [...]. Mas a vaidade, não o amor, foi a minha loucura! (...). Até este momento eu não conhecia a minha própria natureza”.

(Orgulho e Preconceito – Jane Austen)

 

[...] No monólogo interior os escritores tratam de expressar sentimentos ocultos ou desejos reprimidos que não podem expressar com palavras ou ações. São "mundos diferentes no interior das personagens", em que, na maioria das vezes, ocultam fantasias e pensamentos que nunca puderam ser realizados. Em seus escritos (os escritores) refletem seu mundo ideal e seus desejos (ações realizadas ou frustradas). Isso permitiu a vários escritores, durante o modernismo, explorar os diferentes mundos que constituiam o interior de si mesmos, seus desejos e ideais.

De dois modos pode apresentar-se o monólogo interior:

a) Diretamente, isto é, sem a intervenção do escritor, de maneira, que a personagem expõe o conteúdo subterrâneo de sua mente, numa espécie de confidência ao leitor, sem barreiras de qualquer ordem e sem obediência à normalidade gramatical. Ausência de qualquer marca manifestando a intervenção do autor: introduções, ou intercalações («pensava ele», «dizia-se») e mesmo «aspas». Uso do presente (do pensamento) como tempo dominante.

[...]

 

A cama desaparece aos poucos, as paredes do aposento se afastam, tombam vencidas. E eu estou no mundo solta e fina como uma corça na planície. Levanto-me suave como um sopro, ergo minha cabeça de flor e sonolenta, os pés leves, atravesso campos além da terra, do mundo, do tempo, de Deus. Mergulho e depois emerjo, como de nuvens, das terras ainda não possíveis, ah ainda não possíveis. Daquelas que eu ainda não soube imaginar, mas que brotarão. Ando, deslizo, continuo, continuo... Sempre sem parar, distraindo minha sede cansada de pousar num fim. — Onde foi que eu vi uma lua alta no céu, branca e silenciosa? As roupas lívidas flutuando ao vento. O

mastro sem bandeira, erecto e mudo fincado no espaço... Tudo à espera da meia-noite... — Estou me enganando preciso voltar. Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. E porque a primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante e uma estrela tremula dentro de mim." Observa-se nesse fragmento de "Perto do Coração Selvagem", de Clarice Lispector:

1 – o emprego da primeira pessoa e a não interferência do escritor.

2 – a comunicação direta, mas que pressupõe ausência de um interlocutor, como se de repente a personagem impusesse a sua presença por contra própria, afastando o romancista de vez e reduzindo-o a condição de um espectador mudo.

 

b) Indiretamente, isto é, com a intervenção patente do ficcionista na transcrição do fluxo mental da personagem, que comenta, discute e explica (em terceira pessoa do singular), como se este detivesse o privilégio de sondar-lhe e captar-lhe o tumultuado mundo psíquico sem deformá-lo, pelo menos aparentemente. Tudo se passa como se a personagem não conseguisse exprimir seu tumultuado mundo psíquico. Forma-se, no monólogo interior indireto, o triângulo escritor-protagonista-leitor, ao passo que no direto o primeiro desaparece completamente. Porém as características do monólogo interior indireto tornam-no mais fácil e, por isso, é usado mais frequentemente. Em "Mrs. Dalloway ", Virginia Woolf utiliza o monólogo interior indireto com muitos de seus personagens. Aliás, todos os seus romances contêm excelentes exemplos de monólogo interior indireto; às vezes mesclado com outro discurso, às vezes isolado. Em Perto do Coração Selvagem também encontramos alguns exemplos:

 

De manhã. Onde estivera alguma vez, em que terra estranha e milagrosa já pousara para agora sentir-lhe o perfume? Folhas secas sobre a terra úmida. O coração apertou-se-lhe devagar, abriu-se, ela não respirou um momento esperando... Era de manhã, sabia que era de manhã... recuando como pela mão frágil de uma criança, ouviu abafado como em sonho, galinhas arranhando a terra. Uma terra quente, seca... o relógio batendo tin-dlen... tin-dlen... o sol chovendo em pequenas rosas amarelas e vermelha sobre as casas. Deus, o que era aquilo senão ela mesma? Mas quando? Não, sempre...

 

●» Percebe-se, no fragmento, o emprego da terceira pessoa e a nítida presença da autora.

●» A protagonista parece se despersonalizar-se e referir-se a si própria como uma estranha, e a romancista acompanha-lhe os movimentos.

●» Percebe-se também que a interferência é apenas periférica, ficam intocados os impulsos desconexos que habitam a psique da personagem.

 

 

O Solilóquio

●» Vocábulo de origem latina "Soliloquiu(m)", cujo significado é [loqui] falar [solus] sozinho. Na literatura esse termo foi cunhado por Santo Agostinho no seu "Líber Soliloquium".

●» Pode ocorrer tanto no teatro como no romance. O solilóquio presume que a personagem, sozinha em face do auditório e do leitor como se estivesse inteiramente desacompanhada de qualquer outra, articule seus pensamentos em alto e bom som.

●» O solilóquio consiste na oralização do que se passa na consciência do protagonista. Aí está a diferença do monólogo interior. Neste a oralização se passa no subconsciente do protagonista, de modo que suas emoções e idéias são estruturadas de forma ilógica e incoerente; já o solilóquio, por se passar no consciente da personagem, suas idéias e emoções são estruturadas de maneira coerente e lógica, ainda que partindo de um pensamento psicológico e não-racional.

●» Considera-se inexistente, no solilóquio, a intervenção do escritor; a personagem se comunica diretamente com o leitor. Daí ser empregado nas circunstâncias em que o escritor deseje que a personagem expresse com meios próprios o que lhe vai à consciência.

●» O solilóquio é feito sempre na primeira pessoa e dirige-se ao leitor como se a personagem dialogasse com uma interlocutora calada, com uma diferença: no sililóquio é possível dizer tudo o que se passa pela mente, enquanto o diálogo não permite visto ser uma relação.

●» Nos séculos XVI e XVII foi usado regularmente, como se observa, por exemplo, na obra de Shekespeare, "Hamlet", que apresenta o conhecido solilóquio “To be or not to be”, ou de Gil Vicente, cuja Farsa de Inês Pereira (representação 1523) começa com um solilóquio da heroína, do qual destaco as primeiras linhas:

 

Ó Jesus! Que enfadamento,

e que raiva, e que tormento,

que cegueira, e que canseira!

Eu hei de buscar maneira

d’algum outro aviamento

 

Mais uma vez recorro a Clarice Lispector, em o "Coração Selvagem", para exemplificar, com este trecho, o solilóquio no romance:

 

Eu estava sentada na catedral, numa espera distraída e vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E, subitamente, antes que pudesse compreender o que se passava, como um cataclismo, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes compridas e altas abóbadas da igreja, recebiam as notas e devolviam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música.

 

Notou a confidência, numa narrativa consistente, coerente, lógica, que a personagem faz a você? O mesmo pode-se dizer da descrição. Pois é esta a característica que diferencia o solilóquio do monólogo interior.

 

No teatro, sobretudo entre o século XVI e meados do XIX, empregava-se um truque aparentado ao solilóquio: o aparte. Consiste no recurso de a personagem manifestar os seus pensamentos de tal forma que só se tornem audíveis a platéia e não pelas demais figuras em cena, transformando, assim, a platéia em verdadeiro confidente.®

 

 

Informações recolhidas

José de Nicola, F. Toscano e E. Terra - Língua, Literatura e Produção de Textos.

Rocha Lima, Gramática Normativa da Língua Portuguesa.

Massaud Moisés, A Criação Literária.

Branca Granatic, Técnicas de Redação.

 

 

Como Escrever um Fluxo de Consciência                                                     2

  1. Introdução

Escrever em / um fluxo de consciência é como instalar uma câmera na cabeça da personagem, retratando fielmente sua imaginação, seus pensamentos. Como o pensamento, a consciência não é ordenada, o texto-fluxo-de-consciência também não o é. Presente e passado, realidade e desejos, anseios e reminiscências, falas e ações se misturam na narrativa num jorro desarticulado, descontínuo, numa sintaxe caótica, apresentando as reações íntimas da personagem fluindo diretamente da consciência, livres e espontâneas.

 

É como se o autor "largasse" a personagem, deixando-a entregue a si mesma, às suas divagações, resultando um texto que lembra a associação livre de idéias, de feitio incoerente, desconexo, sem os nexos ou enlaces sintáticos de um texto "bem comportado".

 

É como se fosse um depoimento, a expressão livre, desenfreada, desinibida, ininterrupta, difusa, alógica de pensamentos e emoções, muitas vezes de uma mente conturbada e atônita.

 

No fluxo de consciência o pensamento simplesmente flui, pois a personagem não pensa de maneira ordenada, coerente, razão por que o texto se apresenta sem parágrafos, sem pontos, ininterrupto; numa palavra, caótica.

 

Na literatura universal, os grandes mestres desta técnica são James Joyce ("Ulysses"), Virgínia Woolf ("Mrs. Dalloway" (filme: As Horas)) e William Faulkner ("O Som e a Fúria"; "As Lay Dying").

 

Em nosso meio, entre tantos escritores, poderiam ser citados Antônio Callado ("Assunção de Salviano'), Autran Dourado ("A Barca dos Homens") e Clarice Lispector ("Perto do Coração Selvagem"; "A Hora da Estrela").

 

***

 

Fluxo de Consciência3

Podemos definir a ficção do fluxo da consciência como um tipo de ficção em que a ênfase principal é posta na exploração dos níveis de consciência que antecedem a fala com a finalidade de revelar, antes de mais nada, o estado psíquico dos personagens.

 

A palavra “fluxo” não implica em preocupação, pois o fluxo da consciência acontece, contanto que se esteja convencido de que a consciência flui, uma pura questão de técnica. O rumo a seguir é tomar a palavra “consciência” e procurar formular sua significação. Em suma, trata-se de uma questão psicológica e filosófica. A literatura do fluxo de consciência é uma literatura psicológica, devendo, porém, ser estudada no nível em que a psicologia se mescla à filosofia do conhecimento ou do modo como o conhecimento é paulatinamente elaborado.

 

A intenção do introduzir consciência humana na ficção é uma tentativa moderna para analisar a natureza humana.

 

A consciência é o lugar onde tomamos conhecimento da experiência humana. E, para o romancista, é o quanto basta. Ele, coletivamente, não deixa nada de fora: sensações e lembranças, sentimentos e concepções, fantasias e imaginações – e aqueles fenômenos muito pouco filosóficos mas consistentemente inevitáveis a que chamamos intuições, visões e introspecções.

 

De maneira ampla, a contribuição destes escritores para a ficção foi uma só: eles abriram suas portas para um novo campo da vida. Acrescentaram o funcionamento mental e a existência psíquica ao domínio já estabelecido do motivo e da ação. Criaram uma ficção centralizada no núcleo da experiência humana que, se não era o domínio comum da ficção, também não é, conforme eles provaram, inadequado. Talvez o fator mais significativo que os escritores do fluxo de consciência demonstraram com respeito à mente, eles o fizeram de maneira oblíqua: provaram, por meio de suas contribuições, que a mente humana, sobretudo a do artista, é demasiado complexa e indócil para jamais ser canalizada através dos padrões convencionais.

 

O fluxo de consciência ou monólogo interior é, então, a técnica usada na ficção para representar o conteúdo e os processos psíquicos do personagem, parcial ou inteiramente inarticulado, exatamente da maneira como esses processos existem em diversos níveis do controle consciente antes de serem formulados para fala deliberada.

 

Estou relendo A APRENDIZAGEM DOS PRAZERES, deve-se reler este livrinho de vez em quando, esclarece muitas coisas e maneiras que Clarisse coloca. É uma delícia.

 

 

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