O PÃO NOSSO – Herbert de Souza
Com a força de quem incomoda pela simplicidade de seus argumentos, o sociólogo mineiro desmonta qualquer desculpa para não encarar a fome no Brasil. Tratamos milhões de pobres como estrangeiros, como inimigos.
Há quase quarenta anos eu começava minha trajetória de esquerda cristã, para depois percorrer todos os caminhos e desvios do marxismo, do leninismo e do maoísmo, quando publiquei meu primeiro artigo, na revista francesa Témoignage Chrétien. Chamei-o “Capitalismo e Miséria”. Era 1956 e naquele tempo a luta contra o capitalismo inspirava-se numa ética humanista, que não aceitava a miséria. Ser de esquerda era isso.
Ao longo dos anos, as razões para lutar contra o capitalismo foram aumentando, a ética foi cedendo espaço para a ideologia. Lutar contra a miséria passou a ser um subproduto da luta pelo socialismo. No futuro o socialismo acabaria com a miséria, ao fim de um período de convivência inevitável. Restava, como forma de ação, denunciar a responsabilidade do capitalismo na produção da miséria. Mas a convivência acabou por gerar um inconformismo verbal e um conformismo prático.
O mundo deu muitas voltas. Caíram barreiras, referências, mitos e muros. A História não coube em teorias. As teorias negaram suas promessas. O capitalismo continuou produzindo miséria, mas o socialismo avançou sem conseguir eliminá-la. Os sistemas protegiam seus sócios e eliminavam os demais. Depois de 100 anos de socialismo e capitalismo, a miséria no mundo aumentou, a economia transformou-se num código de brancos e numa fábrica de exclusão racionalizada. A modernidade produziu um mundo menor do que a humanidade. Sobram bilhões de pessoas. No Brasil essa exclusão tem raízes seculares. De um lado, senhores, proprietários, doutores. Do outro, índios, escravos, trabalhadores, pobres.
Isso significa produzir riqueza pela produção da pobreza. Sendo um modelo econômico sustentado em vícios sociais, o padrão rural da colônia transferiu-se praticamente intacto ao país urbano, com pretensões a ser moderno. O Brasil tem uma indústria com duas caras – e a mesma moeda. Moderna na tecnologia, atrasada nas relações de trabalho. Sua classe média espreme-se entre a ideologia do senhor e as agruras dos pobres. Teme o destino de um e respeita o poder do outro.
A industrialização brasileira não encurtou o abismo entre pobres e ricos. Os senhores viraram empresários, mas continuaram a viver em novas versões da casa-grande. Os escravos viraram trabalhadores, mas continuaram morando na senzala, em dormitórios feitos para isolar o pobre depois do serviço.
Em décadas de industrialização o Brasil havia gerado três categorias sociais – ricos, pobres e indigentes. É como se elas habitassem países diferentes. Existe a minoria rica, branca, sofisticada, formando uma sociedade mais ou menos comparável à do Canadá. Tem a maioria pobre, negra, silenciosa e resignada, do tamanho do México. E há milhões de indigentes, sendo que estes brasileiros o Brasil trata como estrangeiros, uma população indesejada, descurada, quase inimiga.
Este Brasil é assim por descaso, pois com a produção agrícola atual poderia alimentar 300 milhões de pessoas. Nada, em sua economia, impede que sejam gerados agora 9 milhões de empregos de emergência. Se a posse da terra fosse democratizada de maneira rápida e decidida, abriria lugar para 12 milhões de famílias. Se coisas assim acontecessem os milhões de pessoas que estão passando fome teriam comida, pelo menos comida.
Ser de esquerda é ter presa de chegar ao futuro. Projetar o futuro é temer ou desejar. Prever também pode ser identificar os desejos e interesses existentes agora, é reconhecer a possibilidade de que os melhores desejos sejam os desejos dominantes e com isso se transformem na realidade. Pensar o futuro atrai, desafia. E mudar o futuro depende de mudar a maneira como se pensa o presente. O futuro começa hoje. Num passado recente, quando o sindicalismo parecia inteiramente domado pela repressão militar, as greves no ABC paulista desafiaram a imaginação dos sociólogos e a força policial do governo. No passado ainda mais recente, as campanhas da anistia, das eleições diretas, da Constituinte, do impeachment de Collor – todas elas mostraram o poder que tem o desejo de mudar a realidade.
Não faltam argumentos para quem imagina o futuro como o presente piorado. Se o modelo Casa Grande & Senzala prevalecer, não haverá outro recurso senão viver numa prisão de ruas fechadas por seguranças privadas, em bunkers residenciais. Nesse caso, o futuro brasileiro terá, pelo cinismo e pela indiferença, a sociedade que a África do Sul fez no passado pelo racismo e pela violência. E o outro lado? E se o futuro depender da explosão social dos oprimidos? Aí é provável que o sistema atual também prevaleça. Não é à toa que ele tem antecedentes históricos. Sempre que preciso, a polícia torturou e matou, as forças armadas reprimiram sublevações contra a ordem da classe dominante, as Igrejas ensinaram resignação em vez de horror à injustiça. Deus alegrava a vida dos ricos. O diabo metia medo nos pobres. O brasileiro cordial, produto desse método, é aquele cidadão que ganha salário mínimo e brinca o Carnaval com alegria de fazer inveja ao turista. O Rio de Janeiro não é Los Angeles.
Pode haver revolta, mas é impossível que o caminho da mudança no Brasil seja aberto com explosões sociais. A energia que pode ser usada agora para fazer um futuro diferente está, aparentemente, em outras fontes de transformação. Porque há mudança no Brasil. Ela não corre, mas anda. Não corre, mas ocorre.
Seus sinais estão, por exemplo, no melhoramento das cidades, no basta à corrupção e no movimento pela ética na política, na emergência de movimentos em favor da mulher, da criança ou da ecologia, no anti-racismo. São antídotos contra a cultura autoritária que sempre ditou a receita do desastre social. Eles estão na confluência de duas tendências: parte da elite não quer viver no apartheid sul-africano; e cada vez mais pobres querem sua cota de cidadania. Essa maré vai empurrando a democracia da sociedade para o Estado, de baixo para cima, dos movimentos sociais para os partidos e instituições políticas.
É nela que eu hoje acredito. E, por causa dela, encontro-me outra vez com a velha questão que me levou à militância política: o que fazer com a miséria? Aceitá-la a título provisório? Não dá: aquilo que produz miséria simplesmente não pode ser aceito. A condenação ética da miséria é um ponto de partida. Para mim, o que era a luta contra o capitalismo para atacar a miséria passou a ser a luta contra a miséria para conquistar a democracia.
É preciso começar pela miséria. Essa é a energia da mudança que move a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, revelada na adesão de pessoas de todas as classes sociais, idades, tendências políticas e religiosas, parlamentares e prefeitos, empresas públicas e privadas, artistas e meios de comunicação e, sobretudo, na adesão de jovens à tarefa de recolher e distribuir alimentos. Essa juventude está descobrindo o gosto de romper o círculo de giz da solidão e abrir o espaço fecundo da solidariedade. Esse mesmo gosto que há quarenta anos se reservava à militância.
No combate à fome há o germe da mudança do país. Começa por rejeitar o que era tido como inevitável. Todos podem e devem comer, trabalhar e obter uma renda digna, ter escola, saúde, saneamento básico, educação, acesso à cultura. Ninguém deve viver na miséria. Todos têm direito à vida digna, à cidadania. A sociedade existe para isso. Ou, então, ela simplesmente não presta para nada. O Estado só tem sentido se é um instrumento dessas garantias. A política, os partidos, as instituições, as leis só servem para isso. Fora disso, só existe a presença do passado no presente, projetando no futuro o fracasso de mais uma geração.
Quando eu era cristão e queria lutar contra a miséria, meu dia começava com um Padre-Nosso. Tinha fome de divindade. Hoje, ainda luto contra a miséria, mas meu dia começa com um Pão Nosso. Tenho fome de humanidade.
Do grande e saudoso “Betinho”.