Sobre o Valor Presumido e o Valor Real das Coisas

Não se assuste, não é nenhuma aula do Sebrae sobre fluxo de caixa para pequenos empreendedores.

Eu e um amigo conversávamos sobre um imóvel que está à venda na cidade, já há alguns anos, pertencente a um casal de aposentados conhecido dele (em tempo: não somos corretores de imóveis). Segundo o amigo, a placa de "Vende-se" periodicamente aparece e desaparece da frente da casa conforme o humor do casal. O preço estipulado é de R$30000,00. Começamos a especular por que é que a venda não ocorre. Conjeturei que o preço estipulado provavelmente não é o preço real da casa. Até que ela, em si, é bem conservada e ajeitadinha. O problema é que está localizada num bairro modesto e numa rua que é a via de acesso para a região, bem movimentada. Estes fatores desestimulam o comprador. Concluí, portanto, que o valor pedido não é o valor real da casa. O valor pedido é um valor que chamei de presumido, isto é, um valor que o casal supõe que seja o real, mas não é. O valor real será aquele que um comprador oferecer pela casa e o casal aceitar. Por exemplo, um comprador aparece e oferece R$20000,00. Se o casal recusar, ainda não será esse o valor real, ele será o valor presumido do comprador. Após árdua negociação, chega-se ao valor de R$25000,00, aceito por ambas as partes. O negócio concretiza-se por esse valor. Esse sim, o valor com que o negócio é feito, é o valor real da casa.

Portanto, enquanto está à venda, não se pode dizer que a casa vale R$30000,00, porque esse não é seu valor real. Eu o designei por valor presumido, um valor de "presunção". Esse valor é fictício, imaginário, não está no mundo real. Será possível estabelecer a diferença entre o valor presumido e o valor real das coisas? Vai depender muito das variáveis envolvidas. No caso em questão, deve-se considerar o estado de conservação da casa, o bairro em que está localizado, a rua, os vizinhos, facilidade de comércio, de locomoção, e por aí vai. E algumas dessas variáveis podem não ter consenso. Se para o vendedor da casa nada tem demais que esteja localizada numa rua movimentada, talvez o comprador prefira uma rua tranqüila. Por interferirem muito no valor real da casa, as variáveis podem determinar uma diferença considerável entre o valor presumido e esse valor real. Para que o vendedor consiga determinar um valor presumido o mais próximo possível do valor real, é necessário que ele considere e analise todas as variáveis possíveis, eximindo-se de suas próprias opiniões a respeito delas, que tendem a ser subjetivas. Inclusive as variáveis relacionadas à conjuntura socio-econômica do mercado. Por exemplo, o governo está estimulando o crédito no mercado imobiliário? O povo tem dinheiro sobrando para aplicar em imóveis? De que adianta colocar à venda uma casa se ninguém tem dinheiro para comprá-la? Nesse caso, o valor real da casa é de R$0,00 e a diferença entre o valor presumido e o valor real é de consideráveis R$30000,00.

Dei esse exemplo detalhado para um melhor entendimento do que quero dizer com o valor presumido das coisas. Pode-se facilmente estender a idéia para outros objetos que negociamos no dia a dia, como veículos usados, ações, produtos na prateleira do supermercado (se há diferença entre o valor presumido na etiqueta do produto e o valor real que entendemos que ele valha, escolhemos outra marca mais barata, e o dono da loja vai remarcar o preço do produto, para o valor real, para que ele não encalhe).

Esse conceito de valor presumido e valor real das coisas pode ser estendido a qualquer objeto, material ou abstrato, a que se possa atribuir um valor nas nossas relações cotidianas. Por exemplo: qual o valor presumido e o valor real de um emprego de executivo? O que é que nos atrai num emprego desses? Certamente o que determina o valor presumido e o que nos atrai num emprego de executivo são suas variáveis favoráveis: alto salário, poder na empresa, prestígio, status na sociedade. Mas as variáveis desfavoráveis são relegadas: altas cargas horárias, metas a cumprir, responsabilidade, estresse, afastamento da família, doenças psicossomáticas, etc. Em um livro que li há pouco tempo, "Claro Como o Dia", Eugene O'Kelly, ex-executivo da KPMG, relata que, no auge da carreira, como presidente da empresa, jovem ainda, descobriu um câncer terminal no cérebro que lhe dava apenas mais três meses de vida. Nesses três meses de vida fêz um balanço de sua vida e descobriu que todo seu esforço e sacrifício como executivo, na verdade, era tão somente para conseguir uma aposentadoria confortável, com qualidade de vida e dedicação à família, uma situação que agora nunca viveria. Resolveu, então, dentro das possibilidades, condensar e realizar esse sonho nesses três meses que lhe restavam de vida. É ventilada inclusive a hipótese de que seu estilo de vida agitado e absorvente teria encoberto uma possível detecção precoce do câncer, que poderia tê-lo salvo. Portanto, no valor presumido das coisas, principalmente das abstratas, podemos dar atenção demasiada às variáveis favoráveis e de menos às variáveis desfavoráveis. O que pode nos custar a própria vida.

Que fique claro que não estou condenando aqui a profissão de executivo. Muitos se adaptam ao estilo de vida que ela exige e podem até exercê-la em razoável harmonia com a vida particular. E o exemplo citado é precário, na medida em que é particular demais e em que o caso, chocante, determina no indivíduo uma mudança dramática na sua perspectiva perante a vida, qualquer que seja sua profissão. E para nós, se somos saudáveis, é muito difícil, mesmo que nos esforcemos muito, imaginar como seria essa perspectiva para nós se o caso acontecesse conosco (teríamos aí também, ironicamente, um valor presumido e um valor real a considerar). O exemplo foi dado apenas para ilustrar a tese de que o valor que damos às coisas nem sempre pode corresponder às nossas expectativas, porque somos seres desiguais, com aspirações diferentes, ideais diferentes, capacidades diferentes (e lamentavelmente falhos na nossa capacidade de discernimento disso), colocados à frente de padrões de conduta nem sempre razoáveis que a sociedade nos impõe. Só uma análise crítica e sincera pode nos revelar se estamos certos nos caminhos que tomamos.

E agora, finalmente, posso estender esse conceito do valor presumido e do valor real das coisas para nossos relacionamentos. Nestes, temos os valores presumidos que determinamos para as pessoas de nosso relacionamento. Saber reduzir a diferença entre o valor presumido e o valor real das pessoas, estudando e dando o devido valor às variáveis envolvidas, pode significar uma maior possibilidade de chegarmos a uma relação de sucesso ou expurgarmos uma relação fadada ao fracasso.

Esse conceito do valor presumido das coisas pode não causar catástrofes a um negociante de um objeto material, a não ser, talvez, fazê-lo sentir-se ligeiramente frustrado na consumação do negócio, quando saberá qual é o valor real de seu objeto. A coisa muda, porém, quando, como no caso de objetos abstratos, introduzimos o conceito nas relações humanas. Isso porque os prejuízos dizem respeito não a objetos, mas a nossos mais caros sentimentos e aspirações na vida, como amor, amizade, laços fraternos e filiais, etc.

A diferença entre o valor presumido e o valor real das pessoas é inversamente proporcional ao tempo de convivência com elas. Isto é, quanto maior o tempo de convivência, menor é a diferença, o valor presumido aproximando-se mais do real. No início do relacionamento, essa diferença é muito grande, porque algumas variáveis pessoais poderosas estão envolvidas (como, por exemplo, carência afetiva, solidão, necessidade sexual, frustrações passadas, baixa auto-estima, vulnerabilidade às pressões sociais, etc). Essas variáveis pessoais envolvidas no início do relacionamento nublam nossa visão sobre o valor real das pessoas, dificultando nosso discernimento para medirmos corretamente a diferença entre o valor presumido e o valor real delas. À medida que avançamos no relacionamento, a diferença vai diminuindo e vamos percebendo o valor real da pessoa, porque no início, devido às nossas carências, as virtudes foram maximizadas e os defeitos minimizados. É por isso que, antes do casamento, o parceiro é perfeito. Depois do casamento, mostrando-se como é, no seu valor real, torna-se imperfeito e progressivamente detestável, por frustrar as expectativas anteriores. Invertendo a seqüência nas histórias da carochinha, o príncipe se transforma em sapo e a princesa em gata borralheira.

Não estou dizendo que todos os relacionamentos são assim, estou dando um exemplo extremo. É claro que muitos casamentos dão certo, porque neles os parceiros conseguem reduzir bem, entre si, as diferenças entre seus valores presumidos e reais, considerando todas as variáveis envolvidas. Como fazer isso? Minimizando suas necessidades próprias, suas carências afetivas. Relegando as pressões sociais, caracterizadas pelos estereótipos (exemplo: é preciso casar, pois os solteiros são mais infelizes). Estudando o caráter da pessoa. Quem são os amigos da pessoa, com quem sai? Quais são suas leituras? Que filmes vê? Quais os sites que visita na Internet? Quais são suas convicções? Tem vícios, tem força de vontade? Mente sem pudor? Mente sutilmente? É ético? É livre financeiramente ou depende de alguém? Depende de sua beleza física para conquistar as pessoas? É inteligente ou não consegue entender o que você diz?

É muita coisa para você avaliar? Exige uma árdua negociação? Pode ser, mas vale a pena se considerar que trata-se de estar moldando seu próprio destino.

Não se trata de estar procurando pelo ser perfeito, porque ele não existe. Trata-se de estar procurando um ser que não decepcione nas aspirações particulares ou mais íntimas de quem procura. Um ser que se adeque ao valor que se procura numa pessoa, próprio de cada um (o valor do imóvel será aquele que posso pagar). Como no caso do imóvel, onde algumas variáveis podem ter considerações subjetivas, as variáveis a considerar nas relações humanas podem tê-las em maior medida, dada a complexidade a elas inerente. Uma característica que para um pode ser relevante, para outro pode ser desprezada. Para um pode ser mais importante a beleza, para outro a simpatia. Mas, no cômputo geral, há alguns defeitos importantes num indivíduo que não devem ser relegados, encobertos em nome das suas virtudes ou das carências afetivas do observador.

Essa análise é importante, pois pode tratar-se até, talvez, de estar se salvando a si mesmo. Alguns casos escabrosos, incompreensíveis para nossa mente racional, chocam porque essas diferenças não foram bem discernidas. É o caso da moça de classe média alta que, com a ajuda do namorado e do irmão deste, planejou e executou o assassinato dos próprios pais. Estes discerniram bem a diferença entre o valor presumido e o valor real do namorado da filha? Ou da própria filha (nesse caso, talvez a convivência familiar fôsse de péssima qualidade, tendo pouca influência o tempo decorrido nela)? É o caso do jornalista veterano e bem sucedido que assassinou a namorada jovem e bonita. Teria esta calibrado bem, ao conhecer o jornalista, a diferença de que falo? É o caso do amigo da família japonesa, chacinada por ele quando um dos membros, dekassegui, voltou do Japão com muitos ienes e dólares no bolso. Teria este amigo sido bem avaliado no seu valor real pela família?

Não estou advogando aqui a necessidade de um monitoramento policial rigoroso nas nossas relações, porque isso levaria a um desgaste desnecessário e inútil naquelas que são consistentes e adequadas a ambas as partes. Mas sejamos pelo menos razoáveis na nossa análise. Façamos as perguntas corretas, sem ferir suscetibilidades. Pensemos meticulosamente, friamente, sobre as características marcantes da pessoa analisada. E se virmos falhas, ajamos com presteza, de forma serena, mas firme. Disso depende nosso destino. E talvez até a nossa própria sobrevivência.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 09/01/2007
Reeditado em 15/04/2015
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