Arte ou Artesanato

Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos

Não é hábito, é raríssimamente que ela dói.

Ninguém tem culpa. Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,

E não existe mais o modo de eles terem seus olhos sobre mim.

Mãe ô mãe, ô pai meu pai, onde estão escondidos?

É dentro de mim que eles estão.

Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.

Nasceu lá porque quis um pé de saudade roxa...

Nestes tempos mistos de muitos gostos, desejos e aspirações; perdemos-nos do caminho e talvez até da própria realidade por atitudes às vezes permissivas ou complacentes nos critérios do que devem ser considerados verdadeiros ou não, a partir de valores muito pessoais que talvez não devessem atravessar as portas de nossa própria casa: valores sociais, morais, artísticos, etc.

Começo este texto com um poema de Adélia Prado para propor uma reflexão sobre nossas percepções a respeito da arte e a possibilidade de usar alguns critérios na sua interpretação, sabe-se que a arte neste último século passou por transformações radicais e por modelos e formas num tempo concomitante e que se multiplicaram hibridizando com outras formas num panorama de horizonte ilimitado.

Chegamos então à arte contemporânea, onde a sua simples representatividade não determina seu caráter e tanto quanto o seu objeto não podem ser resumidos apenas em suas formas, linhas ou cores; ou seja, não são suficientes para garanti-la como arte, mas sim o seu conteúdo, portanto temos um paradoxo onde neste objeto onde a ele pertence, conflitam: a forma e o conteúdo, porém a forma é o vir a ser daquilo que propõe o próprio conteúdo como o cristal na sua formação que dependendo de sua combinação química e geológica vai tomar aquela ou esta forma e também aquela cor específica tal como nos diz o teórico Ernest Fischer em “A necessidade da arte”. Se em algum momento resolvêssemos fazer uma representação de um objeto, umas pinturas de uma natureza morta de flores e frutos, a não ser pelo virtuosismo técnico onde demonstro belas pinceladas, nada mais pode se tirar proveito. Além de dizer se está ou não belo por estar bem executado, será que podemos estabelecer algum diálogo, quero dizer, será que podemos ir além da imagem representada? Além da sua forma pura e simples? Que diferença há entre ela e um objeto produzido tal como uma escultura que imita uma paisagem montada por conchas do mar, onde essa imitação se consuma em apenas registrar a existência de uma imagem recortada na natureza?

Marcel Duchamp, artista europeu do início do sec. XX rompeu com uma imensa trajetória linear na arte mundial demolindo a hegemonia dos suportes de pintura e das esculturas e fazendo brotar a semente da apropriação dos objetos, atitude jocosa que resultou no surgimento da divisão de águas entre os modos de representação da arte, essa atitude se chamou “ready made”.

Irritado com sua condição de alijado dos salões de arte, Marcel Duchamp envia para uma exposição, um urinol de banheiro virado ao contrário ao qual vem chamar de “fonte”, esse objeto ao ser retirado do seu contexto perde necessariamente sua função, contudo carrega consigo sua memória de objeto e por ser comparado com uma fonte estabelece um confronto dialético vindo a produzir infindáveis possibilidades de reflexões sobre ele mesmo e o que daí resultaria no imaginário de cada expectador.

Na contemporaneidade, artistas vêm beber da fonte dadaísta de Duchamp tomando para si esse conceito de ready made, renovando as possibilidades de uso de materiais/objetos incomuns, tirando deles aquilo que podem oferecer partindo de sua memória, do seu campo semântico e por estímulos psicológicos de generalização como, por exemplo, John Outterbridge.

John Outterbridge, artista americano do século XX, bebeu da fonte de outros artistas como: Noah Purifoy, Robert Rauschenberg e Andy Warhol que renovaram o uso do ready made na década de sessenta conhecidos como os “novos realistas” e partindo de sua própria história de vida, criou obras vigorosamente poéticas como, por exemplo: First poet, Olívia; 1993.

Esse objeto se apresenta como uma tábua de passar roupas de três pés, sendo um desses pés representado com a imagem de pescoço muito comprido de uma cabra, mas poderia ser também uma girafa, está adornada por pinturas geométricas com forte traço afro-tribal e no seu pescoço pende uma corrente com um peso que denota a um grilhão de aprisionamento, sobre seu tampo estão sete ferros bastante rústicos de passar roupas e seus outros dois pés recriam a ideia de pés e pernas de animais quadrúpedes ruminantes.

A partir das imagens que tenho, analisando seu caráter fenomenológico, podemos em seguida deduzir que o artista nos quer contar algo que está além do objeto, e que todas essas características que mencionei possuem um teor poético, imaginemos primeiro que uma tábua de passar roupa está relacionada ao trabalho braçal, portanto não intelectual em primeira instância, e que é considerado socialmente um trabalho inferior e delegado às classes mais pobres às quais continuamente são oferecidos ou impostos estes serviços, sobre seu corpo (da tábua) estão muitos ferros de passar, pesados, evocando um esforço imenso para a utilização desses objetos e mais uma vez o sentido de esforço corporal e tudo aquilo a que ele remonta é requerido. Somado à representação de uma cabra, animal de pastoreios muito comuns na África ou de uma girafa, encontrada exclusivamente nesse continente e ao grilhão que prende o pescoço fazendo-o inclinar-se em sinal de prostração, concluímos assim que o artista quer nos chamar a atenção à história, à escravidão, à sujeição de nações inteiras, sujeição de uma cultura até o seu aniquilamento e também o que resulta desta atitude nos anos que se seguirão após sua libertação, milhares de afrodescendentes empurrados para a periferia, vivendo de serviços de trato físico como lavar e passar roupas.

Como se dá isso? Não nos é apresentado uma narrativa óbvia, mas sim de outra forma, através de sugestões, de sinais, sinais que só ganham significado quando estão juntos e que vão delimitando o campo de apreciação até ao ponto de aflorar; cada elemento que é oferecido, cada item funciona como uma figura de linguagem: metáfora, metonímia, entre outras como acontece na literatura e da mesma forma poderia dizer que a literatura se apropria de palavras como objetos ou diria, ready mades, a palavra que chamo de objeto então, traz no limite de sua forma, seu conteúdo repleto de conceitos que traduzem a sua identidade, a palavra/objeto dá sentido poético ao texto, preenche-o de narrativas dentro da própria narrativa, valoriza-o, elevando-o ao nível de arte por seu caráter poético e o mesmo acontece nas artes plásticas.

Se dissermos que nasceu um pé de saudade roxa, naturalmente que saudade roxa, que em si já é uma metáfora supondo uma relação entre dois conceitos e evocando a intensidade de uma saudade, ao somar-se ao pé-de-alguma coisa evoca a cor do fruto num turbilhão de sentidos em que a conjunção destes sentidos entre os conceitos vão se desdobrando sem parar, pois a cor intensifica esse fruto/saudade que brota no “peito” e desse modo essas palavras foram retiradas de seu nicho e recontextualizadas para o poema, bem como a cabra foi recontextualizada para o objeto de arte, fora daí, não existe arte, apenas artesanato, cópias ou uma tentativa de representação naturalista.

“Meus pais descansaram seus fardos” é um eufemismo, figura de linguagem ou também chamado de figura de estilo que visa tornar menos significativa alguma coisa grave, desagradável, chocante; portanto a palavra: fardo que vem de outros contextos, do porto ou das fazendas e significa volume a transportar, por exemplo, é um objeto apropriado para ganhar um novo sentido em seu novo lugar de pertencimento, a compreensão da arte nunca nos é dada gratuitamente, é necessário buscar nela algo que quer dialogar conosco, cada elemento de uma composição na arte, seja na literatura, nas artes plásticas ou qualquer outra forma de linguagem, verbal ou não verbal carrega em si sua história, uma história que pode ter caráter geral quando digo, por exemplo, a palavra: mãe; e todos nesse mundo nasceram do ventre de suas mães ou pode ter caráter específico por essa mesma palavra, pois cada um de nós se relaciona de uma forma particular com suas mães, estando elas presentes ou não.

A artesania é uma produção que está dentro do bojo do conceito geral de arte, tem seu lugar de pertencimento como representante de uma cultura ou de um gênero social, toda produção promovida a partir do uso da imagem ou palavra pode ser considerada como produção artesanal independente do tipo de suporte e materiais a serem usados; rústicos, modernos, tecnológicos ou midiáticos; além de geralmente terem propósito comercial como foco principal, não usam a imagem ou as palavras como objeto poético e isso caracteriza sua principal diferença com a arte, apesar de qualquer produção artística trazer a identidade de quem a produz, a arte só se torna presente com a participação de quem a observa, lê, ouve ou sente; é necessária que se estabeleça uma conversa entre o imaginário e a obra, tornando-a única para cada expectador; numa representação direta ou naturalista, uma cópia, uma imitação, em nenhum momento pode interpreta-la, não dialoga com nossos desejos nem se torna íntima de nós, não passa de puro entretenimento, não permanece e não dura, portanto evanesce.

Vinícius Magalhaes
Enviado por Vinícius Magalhaes em 05/11/2011
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