Da Torre do Castelo à Morte do Dragão

Era uma vez uma bela princesa que, ao completar determinada idade, foi presa em uma torre muito alta, em um castelo muito distante. Por ser guardada por um grande e monstruoso Dragão, estava impedida de ter qualquer contato com o mundo exterior. Certo dia, um jovem príncipe, com bom emprego e renda, decide se casar com a donzela; e desde então ela viveu cozinhando, limpando e cuidando dos filhos, para sempre.

Mas e o Dragão?! O que aconteceu com o Dragão?! Além de ninguém tê-lo vencido, ele continuou tendo influência diária na vida da mulher. Antigamente, o cotidiano de uma mulher casada, com toda rotina de cuidados misturada com o ócio de não ter companhia, fez com que ela continuasse sem acesso à realidade, sem direito a estudo, voto, trabalho (exceto o doméstico), sem poder “se intrometer” na vida do marido, ou seja, completamente alienada à vida doméstica, que sem ter qualquer poder de voz ativa, continuava como uma princesa encarcerada.

Na obra de Eça de Queiroz, O Primo Basílio, vemos um exemplo claro dessa condição dada às mulheres por meio da personagem Luísa. A moça passava os dias entediada em casa, lendo livros de fantasias, criando para si uma realidade inexistente. Até o dia em que cansa daquele marasmo do dia-a-dia e, como aventura, passa a ter um relacionamento secreto, extraconjugal, com o primo. Como homem experiente, conquistador e bon vivant, Basílio aproveita-se da inocência da prima com pouco conhecimento do mundo real, e a seduz com falsas promessas. Em paralelo a isso, temos a opinião do marido de Luísa, que defendia a idéia que mulheres adulteras deveriam morrer, embora não pareça defender a mesma punição aos homens, pois era considerado muito mais uma demonstração de virilidade do que falta de respeito para com a companheira. Sem estar preparada para o tipo de problema em que se encontrara, Luísa adoece e acaba morrendo. Tempos depois, quando o primo volta a Lisboa e recebe a notícia do falecimento inesperado da prima, sintetiza em uma frase o desdenho para com as mulheres em geral: “Que ferro! Podia ter trazido a Alphonsine!”, tendo como único remorso o fato de não ter levado uma amante consigo.

O romance descreve com sutileza a forma como a sociedade do século XIX via a mulher, mostrando como Basílio passou a tratar a prima depois de ter conseguido o que queria. Comportamento fruto do sistema patriarcal, no qual a mulher fica subordinada não só ao marido, mas aos homens em geral.

A obra, do período realista, reflete a época de expansão da revolução industrial pelo mundo. Tal revolução foi responsável pelo surgimento de uma nova classe social, o proletariado, fazendo com que as mulheres entrassem efetivamente no mundo do trabalho, dando início ao processo gradativo do confronto a ditadura do Dragão.

O novo sistema, o capitalismo, parece ter proporcionada à mulher condições para emancipação, dando abertura para sua participação no mercado de trabalho, porém acirrou a opressão, ao combiná-la com a exploração de uma dupla jornada de trabalho, criando novas formas de opressão. A mulher, apesar de ter papel fundamental na produção industrial, ao voltar para casa continuava a ser vista como inferior e desvalorizada, tendo considerada como obrigação e responsabilidade individual a continuidade do trabalho, cuidando da casa e dos filhos. E assim criou-se novas formas do Dragão impor sua força. Vitória dele?! Pelo contrário, as mulheres largaram a imagem de princesa indefesa e vestiram suas armaduras, tomando coragem para enfrentar o Dragão, que, embora continuasse soltando fogo às mudanças, estava mais vulnerável às tentativas de reformas na sociedade.

Nessas condições, operárias de uma fábrica de tecidos em Nova Iorque organizaram uma grande greve, no dia 8 de março de 1857, revindicando melhores condições de trabalho, com redução na carga horária, equiparação salarial com os homens e tratamento digno no ambiente de trabalho. O Dragão não deixou por menos, reprimindo a manifestação por meio da violência e, ironicamente, trancou o grupo de mais de 130 mulheres dentro da fábrica que em seguida foi incendiada.

Muitas décadas se passaram, e desde então foram adquiridos inúmeros direitos: voto, legitimidade dos estudos e trabalho, métodos contraceptivos, liberdade sexual, até sutiãs foram queimados. Contudo, a sociedade preserva um trauma na mulher em relação à tirania exercida por anos pelo Dragão, de forma que, até hoje, ela acaba culpando a si por qualquer tipo de opressão. Um argumento comum que exemplifica isso é o de pessoas que dizem que não existe mais machismo, que a mulher que se coloca em posição de vítima para que assim obtenha benefícios. Porém dados do IBGE mostram que além do número de mulheres sem emprego formal ser maior do que o de homens, quando empregadas, recebem cargos e salários mais baixos que dos homens e, para competir com eles, precisam ter maior escolaridade. Milhares de mulheres criam filhos sozinhas, fazendo parte de um grupo maior, das que (com companheiro ou não) são responsáveis por todo trabalho doméstico. E ainda há os que acham que chegamos à igualdade, no máximo, podemos defender a superioridade emocional da mulher.

Também vemos traços do Dragão, que anda se escondendo muito bem, em ditados da “sabedoria popular”, são dezenas deles, um que se destaca pela sutileza é o que diz que “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”; tal dito faz com que a mulher acredite que deve ser considerada normal a agressão tanto física quanto moral dentro do casamento, ficando submissa ao marido. A verdade é que devemos interferir nesses casos, sim. A violência contra a mulher é um caso de saúde pública, é inadmissível que após tantos anos e conquistas, casos de agressão continuem acontecendo. E, embora muito possam pré-julgar que esse é um problema das classes mais baixas, podemos citar, só dos últimos cinco meses (maio à setembro de 2010), três casos de grande repercussão, envolvendo pessoas escolarizadas e de classes mais abastadas. Entretanto, há quatro anos, está em vigor a lei Maria da Penha, que tem proporcionado proteção física e emocional às mulheres que passam por esse tipo de problema, e cada vez mais conscientizado não apenas mulheres, mas também aos homens, que esse tipo de atitude é inaceitável. Percebemos isso ao analisar o aumento significativo no número de denúncias de violência contra a mulher, o que não significa o aumentado de incidências de casos, mas sim a intolerância à agressão.

Não há dúvidas de que, embora o Dragão continue assombrando as mulheres, elas estão cada vez mais preparadas para a luta. Simone de Beauvoir disse que "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher", portanto, não devemos nos acomodar, mantendo a imagem de princesas indefesas, e sim lutar por nossos direitos, agindo como mulheres de verdade; mulheres como Chiquinha Gonzaga, Dandara, Maria Quitéria, Tarsila de Amaral, Pagu, Bertha Lutz, entre tantas outras que são heroínas no dia-a-dia, na sua realidade; mulheres estudantes, mulheres doutoras, mulheres advogadas, mulheres professoras, mulheres sindicalistas, mulheres presidenciáveis, mulheres formadoras de opinião, que não se contentam com pouco. Mulheres fortes, mulheres que matam Dragões.

Marília Bento
Enviado por Marília Bento em 08/03/2011
Código do texto: T2836196
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