Pequenas Coisas - Lição 4

Você brinca com uma lâmina, e isso dói.

Dói, porém dói menos do que você gostaria. Dói menos do que seria necessário para fazer com que você se esqueça das suas outras dores.

Menos do que o necessário para espantar os seus medos.

Você olha para a lâmina e pensa na dor. Você quase diz a ela:

“Eu te quero.”

E você pode jurar escutar como resposta:

“Eu te quero também.”

Então você aumenta a pressão, e com regozijo vê sua própria carne se partindo, libertando seu sangue. Aquele vermelho tão belo, tão profundo... o contraste entre ele e a sua pele, entre as gotas que caem e o branco do piso do banheiro. Isso chega a te excitar, e você sorri.

Você sorri, enquanto suas mãos tremem e sua pele se arrepia.

Você sente frio, mas isso não te incomoda. Nada mais te incomoda, pois sua atenção está totalmente voltada para aquele corte, e para o outro que você está prestes a iniciar, bem ao lado do primeiro.

E mais uma vez, você sente o alívio adentrando seu corpo na forma de uma lâmina bem afiada, ao mesmo tempo em que a angústia flui na forma de sangue.

Diferente do que os ‘normais’ diriam, não se trata de um ato suicida.

Ao fazer aqueles pequenos cortes você pode até flertar levemente com a morte, pensando no quão bom seria se ela viesse, e você nunca mais precisasse encarar seus sofrimentos. Mas no fundo, sabe que ela está distante, ainda. Você se corta não pela morte, mas pela dor.

Porque quando seu coração dói demais, quando a sua alma sangra, você sente uma necessidade inexplicável de dar forma e cor a essa dor, a esse ferimento.

Acima de tudo, trata-se de um ato de desespero, como um pedido silencioso de ajuda.

As cicatrizes te mostram, externam as feridas que você guarda dentro de si, e que no fundo, você quer mostrar para todos. Mesmo que você esconda o que faz, no fundo você pensa: “queria que eles vissem isso, queria que eles vissem o que fazem comigo”.

Mas você nunca vai mostrar, é claro. Afinal, você não quer se mostrar tão fraco quanto a sua pele.

Então você esconde seus cortes, assim como você esconde suas dores e medos, pois se fechando você se sente mais seguro, quem sabe até mais forte.

Porque você sabe que será mais difícil para eles te atingirem da próxima vez.

Mas nunca é. E, por isso, a dor que você expeliu junto com seu sangue não vai demorar a se acumular de novo.

E com isso, mais cicatrizes vão surgindo. E muitas delas vão ficar para sempre, minhas coxas que o digam – é o lugar mais fácil de esconder, você só precisa estar sempre de bermudas.

A automutilação é algo comum entre pessoas que passam por grandes sofrimentos, e o bullying é um deles.

Quando criança, eu aprendi a buscar na dor e no sangue o alívio para meu desespero.

E funcionava, ou pelo menos parecia funcionar.

Mas, por que estou dizendo isso tudo? Por um motivo bem simples: o convívio com Renato fez com que minhas cicatrizes se tornassem pouco a pouco mais numerosas e profundas.

A tensão me tomava ao mesmo tempo em que se misturava com meu medo. Talvez, e por isso, eu pudesse sentir muito bem meu coração bater mais acelerado em meu peito enquanto sentia o sangue correr frio por todas as minhas artérias.

Pálido e trêmulo, eu abri a porta da minha casa para ele.

Renato entrou sem dizer nada, um ‘boa tarde’ que fosse. Ele apenas me encarou com seus olhos repletos de raiva e finalmente perguntou, aparentemente impaciente.

-Sim, vai ficar aí feito leso me olhando, é?

Eu senti vergonha, pois de fato estava sendo um idiota, mas... Oh Deus! Como eu estava inseguro e assustado! Mal conseguia me mover.

Por sorte minha mãe apareceu na sala, e eu acredito que com a presença dela meu rosto conseguiu reaver um pouco de sua cor original. Apenas um pouco, todavia…

-Oi, filhinho, esse é o seu amigo com quem fará o trabalho?

-Sim, mãe, esse é o Renato... –Respondi corando um pouco ao observar o sorriso de escárnio que o meu ‘visitante’ dirigia a mim. Mães definitivamente possuem um poder misterioso de conseguir constranger seus filhos, e sempre nas piores horas possíveis, é claro.

-Fique a vontade, Renato. Se precisar de qualquer coisa, peça ao Tony, certo? – Ela sorriu para ele, definitivamente não notando a aura maligna que aquele ser emanava e o quão falso era o sorriso amistoso estampado na cara dele. E como se não fosse ruim o suficiente, ainda me chamou pelo apelido... ótimo... –Toninho? –Ela invocou minha atenção enquanto eu silenciosamente amaldiçoava a minha existência. –Você está se sentindo bem? Está pálido...

-Eu ‘tô bem, mãe... –Respondi mal-humorado, desviando-me da mão que já vinha na direção de minha testa para checar a temperatura.

-Tem certeza? Você estava tossindo ontem, será que não é a sua asma?

-Eu estou bem! –Insisti, olhando de canto para a cara debochada de Renato.

-Não venha reclamar que não consegue dormir depois. –Ela disse um pouco mal-humorada, e pegou então sua bolsa de cima da bancada e foi em direção à porta. –Vou trabalhar, comportem-se, meninos! E nada de vídeo-game! É para fazer o trabalho!

Éramos relativamente pobres se comparados com as demais famílias que colocavam seus filhos na respeitável escola que eu frequentava, mas infelizmente não éramos pobres o suficiente para ter uma casa cujo chão era feito de terra batida, logo a possibilidade de enterrar minha cara em algum lugar tivera de ser descartada.

Sem opções, comecei a andar e disse em voz bem baixa.

-Meu quarto é nessa direção...

Ele me seguiu, e assim que entrou no aposento, dirigiu-se ao meu computador, sem pedir licença ou qualquer coisa. Começou a mexer como se fosse dele, e ainda reclamou:

-Merda de internet lenta...

Eu apenas me sentei na cama, logo atrás dele, e o vi tentando entrar em diversos sites ao mesmo tempo, buscando alguma coisa sobre a globalização que pudesse, quem sabe, fugir do lugar-comum sem soar minimamente interessante. Eu duvidava que ele fosse encontrar, mas quem era eu para dizer isso a ele?

Um nerd.

E sendo um nerd, eu tinha algumas peculiaridades, as quais Renato provavelmente conhecia de alguma maneira.

-Cala a boca. –Ele se antecipou.

-Eu não falei nada. –Defendi-me.

-Não fale.

Eu suspirei, baixo o suficiente para não incomodar aquele que abusava da hospitalidade da minha casa...

Balançava minhas pernas impacientemente, perguntando-me sobre quando aquele inferno acabaria. Mordi os lábios, sentindo uma vontade enorme de me cortar. Adorava fazê-lo quando estava infeliz...

Mas a presença dele, mesmo sendo a causa deste desejo, me impedia, e por isso eu me conformei.

Contudo, aquele marasmo era um pouco demais para mim. Mais tarde, depois de minha adolescência, eu fui diagnosticado como portador de Distúrbio de Déficit de Atenção, um transtorno mental relacionando à capacidade de uma pessoa para se concentrar em algo.

Eu sou do tipo que nunca vai conseguir se focar em qualquer coisa que não seja interessante, por isso eu tinha algumas dificuldades em certas aulas – as quais eu sempre superava utilizando minha abençoada capacidade de raciocínio lógico. Por causa dessa minha tendência a ser avoado, eu conseguia não ligar para a maioria das coisas ruins que falavam de mim na escola. Estavam cochichando sobre mim? Que se dane, eu estava desenhando no meu caderno mesmo...

Mas o ponto negativo é que: não consigo ficar muito tempo parado, e geralmente quando isso acontece, eu acabo fazendo alguma merda sem querer...

Embora eu já tivesse apanhando o suficiente para saber como lidar com aquela criatura cruel e ignóbil que estudava comigo, meus instintos nerds aliados a minha patetice natural me levaram a transgredir uma das minhas principais regras: nunca tente argumentar com o Renato.

-Nós poderíamos utilizar os animes para exemplificar a influência... –Calei-me ao sentir o olhar gélido dele quase me paralisando.

-Não quero a sua opinião.

Encolhi-me com medo ao mesmo tempo em que meu estômago se revirava em revolta.

Aquilo estava muito, muito errado...

-Nós somos uma dupla, se você não lembra. – Novamente caí na asneira de querer argumentar.

-Não por minha vontade. –Ele foi seco e frio, como de costume, sem perder, é claro, o natural tom de agressividade em sua voz já tão grossa pela ação dos hormônios que trabalhavam aceleradamente.

-Sua vontade não está em questão. O fato é que eu também faço parte, e além disso você está na minha casa! –Levantei a voz querendo pela primeira vez na vida me impor.

E justo para quem eu quis me impor! Talvez em algum momento de devaneio eu tenha chegado à conclusão de que Renato não era nada sem a desprezível corja que o acompanhava e o admirava. Li em algum livro de psicologia que a agressividade é um aspecto que costuma indicar insegurança, e se Renato era inseguro, provavelmente não me atacaria sem estar em seu costumeiro grupinho.

Grande bobagem...

E com isso eu quebrei outra preciosa regra de sobrevivência: jamais levante a voz para o Renato.

Ele se ergueu de supetão, e sem que eu pudesse sequer pensar em me esquivar dele, seus braços fortes me alcançaram e me empurraram com força. Caí sobre o colchão com os olhos arregalados, tentando a todo custo compreender o que estava acontecendo. O peso dele estava sobre mim, e dessa vez ou notei mais do que nunca o quanto ele era maior que eu.

-Cala a boca... –Ele sussurrou raivoso bem ao lado do meu rosto. Sua voz mais parecia o rosnado de algum animal, e eu pude sentir seu hálito em minha bochecha. Aquilo me deixou mais do que assustando, e desesperado eu tentei sair debaixo dele.

Não consegui.

Eu era realmente fraco...

Minhas mãos estavam presas acima de minha cabeça, e minha garganta era levemente apertada. Senti uma grande vontade de tossir, mas não consegui. Minha respiração se achava mais difícil do que nunca. Em pouco tempo, tudo ao meu redor começou a girar e minha vista começava a escurecer. Eu piscava desesperadamente para conseguir enxergar alguma coisa, mas tudo que vi foi a fúria nos olhos daquele garoto.

Mergulhado em aflição, eu apaguei.

Eram coisas simples. Pequenas coisas mesmo, mas que naquele momento pareciam fazer valer cada um dos cortes nas minhas pernas.

Notas:

E gostaria de agradecer imensamente ao anjinho da minha vida que betou esse capítulo: Naninha! Adoro você, Naninha! Se tê-la lendo uma fic minha já era uma honra, imagine betando!

És o meu anjinho, coisa fofa!

Ryoko
Enviado por Ryoko em 11/02/2010
Código do texto: T2081452
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