Pequenas Coisas - Lição 3

Mesmo temendo me tornar enfadonho e repetitivo, deixem-me dizer mais uma vez, apenas para deixar tudo bem claro:

Eu não sei como isso tudo começou.

Quando vi, já estava sendo isolado de todos os demais, sob o majestoso, tirano e implacável domínio do Renato. Parecia até natural o fato de ninguém mais falar comigo para outra coisa que não fosse me atazanar, me ofender ou tirar sarro da minha cara.

Às vezes, eu fechava os olhos, querendo conter as lágrimas, e nos via todos juntos, crianças felizes brincando no playground da escola.

Mas nós não éramos mais crianças, ou até podíamos ser, mas não deveríamos mais ser. E eu fui o que demorou mais a se dar conta disso.

Onze, doze, treze anos... Não sei ao certo, minha lembranças são turvas em relação a essa época, ainda mais quando envolvem números. O fato é que meu inferno pessoal teve início com a puberdade de meus colegas de classe, e com o total atraso da minha puberdade.

É aterrorizante ver todos ao seu redor crescendo, se desenvolvendo, enfim, ‘virando homens’, enquanto você permanece com aquele mesmo corpo infantil, fraco e pequeno.

Obviamente, isso levou a minha auto-estima para o saco, e como se já não me fosse suficiente ruim me sentir excluído pela natureza e por seus poderosos hormônios, eu fui excluído socialmente mesmo. Eu era pequeno, tímido, sozinho e acanhado: uma fórmula perfeita para uma vítima de maus-tratos, pois nunca me voltaria contra os agressores, tampouco iria delatá-los. Era seguro me utilizar como válvula de escape para maldades, frustrações e inseguranças contidas nos âmagos de cada um deles.

Afinal, era muito fácil se mostrar superior a alguém como eu, e nisso todo meu sofrimento adquiria um status importante: era pelo bem-estar dos demais. E como a democracia surgiu de um pensamento lógico muito positivo à coletividade humana, era fácil saber quem sempre se dava bem.

Eles, é claro.

E se hoje eu posso estufar meu peito e dizer “eu não guardo mágoas”, é porque as mesmas ocuparam por tanto tempo meu coração que eu me vi em uma situação na qual ou as expulsava, ou morria.

Pode parecer exagero, frescura ou ‘coisa de emo’ - sendo que na minha época isso ainda nem existia - mas o fato é que cada pequeno gesto, cada pequena agressão... Tudo aquilo me machucava mais profundamente do que eles podiam imaginar.

Além dos constrangimentos ocasionados pelos apelidos jocosos, e pelas ofensas sem fim, tinha aquele negócio chato de adorarem derrubar meu lanche, ajudando dessa maneira a cultivar minha magreza e me garantindo muitas broncas da dona Zuleide.

Dona Zuleide foi uma pessoa que marcou minha memória, sabe-se Deus por que... Ela era a principal servente de lá, e de algum modo, mesmo eu apresentado problemas de memória, a cara carrancuda dela continua fresca na minha mente, assim como a sua voz grave e irritadiça. Ela era uma daquelas figuras lendárias que existem em toda escola, do tipo que parece que estava lá desde os primórdios dos tempos, e que provavelmente vai morrer lá.

Eu não duvido, pois se passaram vários anos, e pasmem, ela continua trabalhando lá.

Eu tinha um certo receio de falar com ela. Hoje eu sei que o jeito aparentemente grosseiro era apenas o jeito de ser dela, provavelmente fruto de uma vida sofrida, tendo que limpar a sujeira de um bando de filhinhos de mamãe mal-criados que acham que podem pisar nos outros. Mas na época eu tinha mesmo medo dela, pois parecia que ela me xingaria a qualquer instante, principalmente porque eu sempre dava mais trabalho para ela, mesmo não sendo minha culpa.

Outra coisa chata era quando meu dinheiro, meu estojo, e até meus deveres de casa sumiam, e algum tempo depois reapareciam misteriosamente no lixo – exceto o dinheiro, é claro, afinal ninguém era doido lá para jogar dinheiro no lixo.

Obviamente, eu nunca reclamava.

Pior que isso mesmo era a Educação Física, de longe a pior aula de todas. Como eu não consegui de jeito algum um atestado de saúde, e minhas encenações de ataque de asma eram miseráveis, eu era obrigado mesmo a participar, ou fingir que participava.

Como se não bastasse a humilhação de nunca ser escolhido por nenhum time, o professor obrigar a me encaixarem, ou pior, ver gente brigando para não fazer parte do time que eu estava, eu ainda era o alvo preferencial de todas as boladas.

Essa é uma das lembranças mais vivas que eu tenho: um belo dia o professor saiu da quadra, deixando-nos sozinhos. Foram tantas boladas, vindas de todas as direções, que eu não sabia o que fazer. Eu apenas sentei no chão, contendo o choro, esperando que eles se cansassem, ou que o professor voltasse. O professor voltou, e chegou a ver o que eles estavam fazendo, mas nem se manifestou.

É o que geralmente acontece: ninguém nunca se manifesta. Até mesmo os adultos se fazem de cegos, fingem que não enxergam, fecham seus olhos. Acham que esse absurdo é algo normal, brincadeira, coisa de criança.

Acham que não dói, que não machuca, que não mata.

E é por isso que eu fico revoltado quando vejo alguma diretora de escola dizendo “Ah, na nossa escola é tudo tranqüilo, não temos problema nenhum com as crianças, são todos amiguinhos.”, quando na verdade, prevalece nas escolas algo que é largamente visto em penitenciárias do mundo inteiro. O que vale mesmo a Lei do mais Forte e a Lei do Silêncio, assim, violências, roubos e abusos cometidos entre os presos, ficam só entre eles. Muitas vezes, os guardas e até o diretor da prisão sabem dos crimes cometidos contra outros presos lá dentro, mas preferem fazer vista grossa. Geralmente alguém tem de parar no hospital ou morrer para que eles tomem alguma atitude de verdade

Ah, claro, tinham também os empurrões e escorões freqüentes, os quais me renderam algumas escoriações, vários hematomas, uma costela trincada e um pulso quebrado, ao longo da minha vida escolar. E não poderia também me esquecer das duas vezes que quase me mataram afogado na piscina.

Pior que isso, só mesmo o caminho de volta para casa. Longe da escola, Renato e seu grupinho se tornavam ainda mais cruéis. Faziam aquela rodinha infernal que me impedia de tentar fugir, até porque, mesmo se eu tentasse fugir, eles eram muito mais rápidos que eu.

Aqueles chutes iam fundo, machucando diretamente na minha alma, e cada noite que eu chegava em casa era mais sofrível olhar meu corpo todo machucado no espelho, e mais difícil era escondê-lo da minha mãe.

Mas o mais humilhante mesmo era o isolamento social a que era submetido. Eu só ficava sozinho na hora do intervalo. Geralmente ia para a biblioteca, pois lá eu não apanhava. Procurava ficar perto das professoras, pois elas eram as únicas que conversavam comigo. E quando tinha trabalhos em grupo, eu sempre pedia para fazer sozinho, pois mesmo sendo inteligente, ninguém queria correr o risco de ser associado a mim.

E quando alguma professora fazia a sacanagem de obrigar mesmo a gente a fazer grupo, me encaixando em um à força, mesmo com as pessoas brigando para me manter fora, eu acabava fazendo tudo sozinho mesmo.

E foi num desses acontecimentos extremamente desagradáveis que a Professora Rosalinda – a mais desagradável e insensível de todas as professoras que você puder imaginar – me obrigou a fazer um trabalho em dupla com o Renato.

Ele ficou revoltadíssimo, brigou, disse que não aceitava, mas não teve jeito. Quando a Professora Rosalinda decidia algo, nada a fazia mudar de idéia.

Ficou decidido: faríamos um projeto para a odiável Feira do Conhecimento.

O tema era a porcaria da Globalização, como se não tivesse gente suficiente falando da mesma coisa. Teríamos que escolher um sub-tema, explorá-lo e montar um estande para apresentá-lo à toda escola. Um saco.

E bem, eu tenho certeza que poderia fazer isso sozinho, eu sempre fazia. Mas o problema era o Renato e seu gênio forte. Qualquer outro se acomodaria e me deixaria fazer tudo sozinho, mas o Renato não. O Renato é aquele tipo de pessoa que nasceu para mandar nos demais, e não aceita nada que não esteja de acordo com seus planos. É orgulhoso, cabeça-dura, e faz questão de fazer algo grandioso, para que todos se admirem e ele possa esfregar na cara de todo mundo “eu que fiz!”.

Normalmente, ele planejaria tudo, e faria com que seu parceiro colocasse em prática, exatamente da maneira que ele desejava. E o fato de eu ser o parceiro dele o incomodava porque, se ele me deixasse fazer a parte ‘operacional’ da coisa, pelo fato de eu também ser inteligente, poderiam pensar que a idéia também havia sido minha. Pelo menos foi dessa maneira que eu compreendi a coisa.

O fato é que foi dessa maneira que eu tive que me aproximar do meu principal inimigo, da pessoa que eu mais odiava e temia na vida.

Ryoko
Enviado por Ryoko em 06/02/2010
Código do texto: T2073385
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