Pequenas Coisas - Lição 1

Por mais que tentasse, eu não conseguiria identificar um começo para essa história. Assim como sou incapaz de achar um motivo para ser como sou.

Podia muito bem dizer que tudo começou graças àquele infeliz natal, quando papai disse que iria ao mercado; depois de alguns minutos, pude escutar o grito de horror vindo do quarto. Era minha mãe, desolada ao notar que as coisas dele não estavam mais lá.

Não... Papai não tem nada haver com isso. Sua presença nunca me fez falta... Sinceramente, acho que foi melhor assim. Ele nunca foi um bom modelo paterno ou masculino mesmo. Sem ele, não haveria ninguém para bater na mamãe. É, posso dizer, sem pesos no coração: Obrigada por ter nos abandonado, papai. Foi o melhor que você já fez por nós.

Bem, é claro que a mamãe não encarou isso da mesma maneira que eu, e uma semana depois ela teve que ser internada após tomar duas cartelas de um remédio lá... Foi um período bem conturbado para mim: Filho único, nenhum parente na cidade e uma mãe quase louca. É ruim para qualquer criança, e foi por pouco que ela não perdeu minha guarda.

Mas não pensem que eu culpo minha mãe. Não, jamais cometeria ato tão leviano. Minha mãe errou, mas porque estava desesperada. Mas ela sempre me amou e cuidou bem de mim. Ela se recuperou de toda sua dor apenas para poder cuidar de mim. Batalhou muito para me criar sozinha, e nunca teve o apoio de ninguém. Admiro muito essa mulher.

Claro que eu ainda poderia culpá-la por nunca ter notado que havia algo errado comigo. Poderia culpá-la por me insistir em me fazer estudar naquela escola particular. Mas eu jamais a culparia, uma vez que eu sempre tentei esconder minha realidade dela. Eu sempre me recusei a pedir ajuda.

Seu existe um culpado, esse culpado seria eu, é claro... Mas que culpa eu teria por apenas ser quem sou? Não é culpa minha se o mundo é injusto. Poderia jogar a culpa naqueles que me agrediram, que transformaram minha vida em um inferno, é claro! São eles os culpados! Queimem-nos!

Ah, como se queimá-los fosse adiantar de algo, fosse apagar alguma das cicatrizes e me fazer esquecer as dores...

Bobagem. Tudo uma grande bobagem...

E é esse o primeiro ponto: De nada adianta achar culpados.

Uma coisa que a gente aprende quando se é vítima é o fato de que identificar culpados não ajuda em nada.

Sabe aquele famoso mote evolucionista a respeito de 'só os mais fortes sobrevivem'? Pois é, é brutal imaginar algo assim em uma sociedade teoricamente civilizada pós-moderna, em que se vive numa era em que o bem mais importante de alguém é o conhecimento. Mas essa é verdade. Especialmente quando não se tem maturidade suficiente para fazer essa análise da nossa atual realidade.

Uma tristeza, mas parece que o bullying é o destino certo de todo aquele que nasce com cérebro avantajado e músculos aparentemente atrofiados. Uma injustiça, mas fazer o que?

Talvez, diferentemente de achar culpados, achar motivos pudesse ajudar. Bem, eu não sou feio (mas também não sou convencido, que fique claro), mas tenho o perfeito estereótipo de um belo panaca: Branquelo (afinal, minha pele quase nunca era exposta ao sol), pequeno, magricelo e ainda uso os benditos óculos que costumam perseguir a maioria dos nerds, sabe-se deus por que.

Era bem chato ouvir a meninas comentando “Ele é tão bonitinho... Pena que seja um otário”, mas eu me acostumei rapidinho. Devo dizer que era bem mais agradável do que levar surra dos meninos...

Ah, também sempre tirei notas ótimas, me tornando o queridinho das professoras... O que nunca me ajudou em nada, afinal, elas nunca me viam apanhando mesmo...

Mas como eu dizia, achar culpados não resolve nada, não muda nada. Achar motivos também não.

E é esse o segundo ponto: Ainda bem, pois cada um desses acontecimentos, cada uma dessas dores, cada uma dessas pequenas coisas... Foi tudo isso que fez o que eu sou hoje.

Ryoko
Enviado por Ryoko em 09/09/2009
Código do texto: T1800175
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