Os Retratos Sociais de Eça de Queiros como Resgate a Portugal

Do homem natural ao homen social. Esta passagem, nos dirá Rousseau será marcada por uma espécie de contrato ou pacto: um conjunto de convenções fundamentais que, mesmo não tendo sido formalmente declaradas, resultam implícitas na vida em sociedade. Este contrato social, que inclui compromissos recíprocos, faz com que nós nos alienemos em nossa integridade, cada um dando-se enquanto indivíduo, com nossa pessoa e posses, e colocando-se seob uma vontade geral; em contrapartida recebemos esse todo comum, fruto dessa vontade coletiva. No entanto, esta passagem sendo algo não proviniente da Natureza e sim das convenções humanas, ocorrerá como uma espécie de degeneração do homem, certo distanciamento, um afastamento de si: o amor de si mesmo transformado em amor-próprio; o ser relegado ao parecer, a não correspondência ente o agir e o falar, entre o agir e o discurso; a origem e o processo da degeneração do homem, enfim, uma ordem social que, em todas suas instâncias, contraria a Natureza .

Faremos duas citações da obra a Cidade e as Serras, de Eça de Queiros para análise da mesma.

Começamos o nosso ensaio com a citação de Zé Fernandes, na qual pensamos encontrar, o maior resgate feito por Eça de Queiros com relação à pátria, fazendo deste trecho uma grande explanação do que é a cidade grande, bem como as suas consequências, lembrando-nos que o resgate de tudo, do homem, da pátria, da cultura pode estar na simplicidade e na autenticidade das coisas, que acentua as virtudes do campo humilde, atrasado, mas saudável, contra o estrangeiro, e a civilização.

“ (...) uma ilusão! E a mais amarga, porque o homem pensa ter na cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto de ossos moles como trapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentauros de chumbo sem sangue, sem febre, sem viço, torto, corcunda- esse ser em que Deus, espantado, mal pôde reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre o subalterno a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar: rico e superior como um Jacinto, a sociendade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, prazer, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel... A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ele recompensa os santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos loga na cidade se desumanizam! Vê seu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquietada da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente como um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns como espelhos; onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho deus do himeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da paixão a apretada carteira do dote! (...) Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a inteligência, porque ou lhe arregimenta dentro da banalidade ou lhe empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de idéias e fórmulas que constitui a atmosfera mental das cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados só exprime todas as expressões já exprimidas; ou então, para se destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão. (...) Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e agente vive acamada nos prédios com o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as meninas se murmuram através de arames- o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela Cidade! Zé Fernandes continhou a filosofar, acrescentando preocupações de caráter pessoal, indagando a posição dos pequenos que, como vermes, se arrastavam pelo chão, enquanto os poderosos os massacravam; eles iam às operas aquecidas, lançando aos pobres não mais que algumas migalhas. Religiosamente, acreditava ser necessário um novo Messias que ensinasse às multidões a humildade e a mansidão .

Em nossa segunda citação queremos mostrar um outro retrato social, contrário ao relato das serras que tenta mostrar todos os seus benefícios e aspectos positivos.

“(...) Certo dia, ao percorrer seus domínios, Jacinto conheceu o outro lado da serra: uma criança muito franzina viera pedir socorro para a mãe agonizante. A partir desse momento, as decisões de Jacinto tomaram novo rumo, pois ele começou a se preocupar com o lado triste da serra, e passou a fazer caridade, reconstruir casa, dar novo alento à vida dos humildes. Em uma das inúmeras visitas que lhe fez o narrador, Jacinto confessou que pretendia introduzir um pouco de civilização naqueles cantos tão rústicos. O povo da região começou a agradecer as benefeitorias e logo passou a circular à lenda que o senhor de Tormes era D. Sebastião que havia voltado para ressuscitar Portugal .

Queremos ressaltar que esses dois trechos da obra mostra-nos o resgate do autor a Portugal, em sua valorização, em sua construção, e que ambas, por meio desses retratos, falam do lado positivo e do lado negativo de uma identidade nacional, também construído na metáfora de uma criança, que tudo tem pela frente, que a vida inicia-se nessa fase, e que um país começa desde pequeno também e que necessita de cuidados, de reparos, de construções e para crescer nem sempre é preciso abandonar o grande, porque o mesmo se faz necessário. Quiçá, Jacinto fosse a maior metáfora da necessidade de Portugal, um meio termo, para retratar tudo que se iniciava neste país.

Fica-nos, entretanto, uma dúvida em nossos entendimentos. Será, realmente, um resgate a Portugal? Seriam essas as palavras de que Eça de Queiros, uma vez que a obra não foi terminada por ele? Temos aqui o olhar de Ramalho Ortigão, que quiçá quisesse resgatar Portugal e a própria imagem de Eça, marcando, assim, uma nova fase na vida do autor, dentro da escrita, terminando o combate da ironia e do retrato realista da sociedade portuguesa e, claro não seria diferente, da literatura portuguesa.

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Gislaine Becker
Enviado por Gislaine Becker em 03/09/2009
Reeditado em 03/09/2009
Código do texto: T1790278
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