Heteronomia versus Autonomia (*)

“Heteronomia: Condição de pessoa ou grupo que receba de um elemento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho à razão, a lei a que se deve submeter.

Autonomia: Propriedade pela qual o homem pretende poder escolher as leis que regem sua conduta.” (Dicionário Aurélio)

Nas nossas ações cotidianas mais comezinhas jamais nos questionamos quanto às verdadeiras motivações que as impulsionam. Tendemos a acreditar, por um óbvio sentimento de autossuficiência, que elas são sempre movidas por nossa própria vontade, que elas nascem da nossa autonomia em relação às escolhas que fazemos quanto a aquelas que resolvemos realizar. O adolescente que reivindica aos pais um telefone celular (provavelmente um dos ítens mais dispendiosos hoje na educação de um filho, por incorporar uma despesa mensal permanente) não se pergunta se realmente necessita dos benefícios que o aparelho lhe traz ou se o quer apenas para se sentir enturmado no grupo social de que faz parte. Esse questionamento pode se estender a quaisquer outros produtos modernos que adquirimos. Será que compro um carro de grande potência e sofisticados controles porque realmente preciso dessas propriedades nele ou apenas para me igualar ao vizinho que comprou um carro similar? Quando escolho um produto de determinada marca no supermercado escolho-o porque avaliei suas qualidades em relação às de outras marcas ou porque o vi sendo anunciado por meu ídolo na televisão? Se bebo ou fumo numa roda de amigos, bebo ou fumo porque realmente aprecio a bebida ou o cigarro ou apenas para não me sentir excluído e alvo de chacota daquele grupo?

Pierre Weil, psicólogo e educador francês radicado no Brasil, reitor da Universidade Holística Internacional de Brasília, no livro “Normose- A Patologia da Normalidade” revela que, na sua adolescência, quando fumar era quase uma exigência social, para não se sentir excluído do grupo de pessoas de seu relacionamento, onde todos fumavam, tentou aprender a fumar por um mês, achou horrível e desistiu, mas comprou um isqueiro para que, se alguém lhe pedisse fogo, não precisasse responder, constrangido, que não fumava (essa resposta seria imperdoável e o isqueiro serviu-lhe como instrumento de inserção no grupo).

O questionamento em questão se resume na consideração de duas condições subjetivas de decisão de que todo indivíduo é portador: a autonomia e a heteronomia. Em suma, quaisquer decisões que tomamos sobre o que quer que façamos nas nossas vidas são sempre movidas ou pela nossa própria vontade (autonomia) ou pela vontade do mundo exterior (heteronomia). É dessa dicotomia autonomia/heteronomia presente em todo indivíduo e das implicações dela decorrentes que vai tratar este texto.

É no contexto dessa dicotomia que se insere a lógica coletiva, expressão cunhada por Gustave Le Bon (1841-1931), psicólogo francês que estudou a chamada psicologia das massas, no livro “As Opiniões e as Crenças”, para explicar o comportamento de grupo, aquele comportamento às vezes irracional que adotamos quando estamos num grupo social. Diversos exemplos desse comportamento podem ser observados no gênero humano, talvez até mesmo próximos a nós, desde os inofensivos que não trazem maiores conseqüências até aqueles que trazem conturbações sociais e políticas relevantes.

Segundo Le Bon, a lógica coletiva tem comandado o ser humano nas suas ações e nos seus pensamentos ao longo da sua história evolutiva. Devido à dificuldade de sobreviver solitariamente num ambiente agressivo, ele teve por necessidade que adotar o tribalismo em sua forma de viver. Assim, teve que se adaptar e sujeitar-se ao comportamento do grupo a que pertencia. Daí que toda ação e pensamento do indivíduo aconteciam em função do que esse grupo determinava como adequado para os seus membros. A lógica coletiva, nesse sentido, pode ser cruel para com mentes independentes que fujam ao status quo. Um exemplo dramático é o de Giordano Bruno, filósofo que viveu no século XVI, mártir da liberdade de pensamento, queimado vivo por questionar os dogmas religiosos severamente entranhados na cultura da época. A lógica coletiva parece determinar a um grupo um comportamento coletivo próprio desse grupo que vai determinar, por sua vez, o comportamento de cada membro desse grupo, mesmo que, eventualmente, contrarie os princípios pessoais do membro como indivíduo. Os genocídios ocorridos recentemente em Ruanda, na África, por conta de uma histórica rivalidade entre as etnias hutu e tútsi, mostram a que ponto a lógica coletiva, impondo a heteronomia sobre a autonomia do indivíduo, pode incitar neste atos bárbaros não condizentes com o comportamento normal de um ser humano. É provável que aquelas pessoas armadas com machetes, prontas para proporcionarem mortes horríveis a outros seres humanos, fossem, no dia a dia, em tempos de paz, pacatos chefes de família. Em um exemplo mais ameno, um indivíduo tímido quando sozinho pode se transformar, num estádio de futebol, entre outros torcedores do mesmo time, num fanático torcedor a gritar quando seu time faz um gol ou a xingar o juiz com um palavrão quando acha que ele cometeu um erro contra seu time. As brigas entre torcidas organizadas de times de futebol mostram que, quando em bandos, os indivíduos podem se entregar a atos ferozes motivados por razões incompatíveis em sua importância com esses atos. A lógica coletiva, assim, pode determinar mudanças nas concepções morais do indivíduo (sua moral relativa mudará de acordo com as circunstâncias). A lógica coletiva determinou no povo alemão a assimilação das idéias racistas de Hitler.

O filme “Pecados de Guerra”, de Brian de Palma, retrata o drama real de um grupo de soldados norte-americanos na guerra do Vietnã, que rapta, estupra e, por fim, mata uma menina vietnamita. Na lógica coletiva daquele pequeno grupo, incentivado pelo sargento que o comandava, nas condições precárias e altamente estressantes em que estava inserido, aquele ato tornava-se aceitável e todos teriam que dele participar para legitimá-lo. Pela atitude do sargento, vemos a importância que tem o líder de um grupo na lógica coletiva, na imposição da heteronomia. O carisma de um líder move o grupo, não importando aqui as reflexões morais sobre seus atos. Num ambiente extremamente hostil, onde a morte era uma ameaça constante, a expectativa de sobrevida para todos do grupo era mínima. Esse ambiente selvagem, longe da civilização a que estavam acostumados, outorgava-lhes a distância necessária para não melindrarem olhares mais críticos. Havia uma cumplicidade mútua, o que lhes garantia o abafamento do caso. Todas essas condições, consubstanciadas na lógica coletiva, davam-lhes a quase certeza de que a possibilidade de uma punição futura era remota. Essa lógica coletiva atendeu ao instinto sexual fortemente represado num grupo de homens vivendo situações estressantes sem outros expedientes eficientes de alívio. Assim, a lógica coletiva se sobrepôs à lógica racional quando os freios morais foram impotentes para barrá-la em sua insanidade. O único soldado do grupo que se recusa a participar do crime e que, afinal, por isso, permite que o caso venha à luz e os criminosos sejam punidos, torna-se na história quase um herói sobre-humano e inacreditável, frente às terríveis ameaças sofridas dos colegas e, como se não bastasse, às pressões políticas de seus superiores hierárquicos, interessados em abafar o caso, no afã de não deixar que essa mancha do exército viesse à tona, num momento delicado em que a opinião pública norte-americana claramente se voltava contra a guerra. A impressão que se tem, ao se assistir ao filme, embora se torça pelo herói, é a de que um ser humano com tal envergadura moral é uma ficção de história em quadrinhos. É um caso admirável, embora talvez não incomum, numa dessas situações-limite do gênero humano em que emerge o verdadeiro caráter de um homem, em que a autonomia suplantou a heteronomia.

A lógica coletiva pode ser vista como o elemento propulsor mais evidente da instauração da heteronomia no indivíduo. O sentimento do grupo o controla, determina suas ações. Comumente o sentimento de grupo se direciona na forma de ódio ao diferente ou ao grupo diferente que não se encaixa em seus padrões e com o qual não se identifica e que, por isso, afronta. Assim, o ódio se instaura no indivíduo por transferência, independente de seus princípios morais autônomos. A heteronomia esmaga sua autonomia. Destarte, a autonomia e a heteronomia (ou a razão sábia e a razão louca, no sentido mais abrangente de Rouanet) podem transitar no mesmo indivíduo conforme as circunstâncias em que se insere, por exemplo quando está sozinho e quando está em grupo. O conflito ocorre dentro dele mesmo, quando não possui uma base moral sólida que o habilite a perceber o processo psicológico em que tal dicotomia opera dentro dele. A heteronomia não se instaura por um automatismo inevitável decorrente das circunstâncias, mas por comodismo e negligência morais do indivíduo.

Curiosa e ironicamente parece que o próprio Le Bon se colocou involuntariamente como vítima de sua teoria, quando defendeu publicamente as diferenças de raças. Foi vítima, portanto, de heteronomia ao se deixar subjugar pela lógica coletiva de seu grupo racial.

A heteronomia se instala no crente quando se deixa dominar pelas crenças falsas impostas por seu grupo religioso, crenças essas que não têm quaisquer tipos de comprovação, mas que devem ser aceitas apenas pelo instituto da fé (o crente deve ter fé, pois a dúvida o desqualifica perante a divindade). Assim, a heteronomia religiosa impõe ao indivíduo qualquer crença que queira nele implantar, a qual comumente é irracional e às vezes contraditória com as próprias regras morais do grupo. Por exemplo, algumas religiões proíbem o transplante de órgãos, embora combatam o egoísmo. Existirá exemplo mais cabal de egoísmo do que recusar-se a doar os próprios órgãos se eles não servirem mais? Líderes religiosos apanhados em contravenção continuam abertamente a ser venerados, mesmo com todas as provas de ilicitude em suas ações nos bastidores. A ideia que passam de que estão sendo “perseguidos por forças malignas” e aceita sem resistência é prova de que na heteronomia religiosa a mente do indivíduo está obscurecida pela devoção e idolatria ao líder. Homens-bomba se explodem no meio da multidão no intuito de encontrar 72 virgens no paraíso. Por que outro motivo o crente aceita tão facilmente óbvias contradições na sua religião senão pelo fato de que sua vontade autônoma, reflexiva, está totalmente dominada pela sua vontade heterônoma, tirânica?

Assim como nas religiões, as ideologias também podem determinar a heteronomia nos indivíduos que as adotam. Ao se filiar fanaticamente a um grupo político o indivíduo pode perder o juízo crítico quanto à conduta moral de seus membros, mesmo quando esta seja contrária aos seus próprios princípios. Os princípios morais adotados pela sua autonomia podem ser abandonados se conflitarem com os interesses ditados pelo partido à sua heteronomia ideológica. Assim, o indivíduo fiel ao seu partido poderá condenar o motorista infrator que pagou uma propina ao guarda de trânsito para escapar da multa, mas fechará os olhos se seu deputado a serviço do partido se envolveu em corrupção nas relações com o governo. É dessa dinâmica existente no indivíduo que os líderes fascistas se valem, através da oratória e da propaganda, para conquistar a adesão de seus grupos sociais.

Numa situação mais abrangente a heteronomia pode se instaurar no indivíduo de maneira quase sub-reptícia pela sociedade em que está inserido. É a heteronomia imposta, por exemplo, pela sociedade de consumo. A sua principal arma para isso é a propaganda, veiculada pelos mais variados meios e modos. Os casos do telefone celular e do carro sofisticado citados no início do texto são emblemáticos de como essa dinâmica se faz presente no mundo atual. É essa sociedade que cria e impõe ao indivíduo as falsas necessidades, denunciadas por Marcuse. O indivíduo não possui no momento o dinheiro para comprar à vista o produto que precisa sair da fábrica para dar lugar à fabricação de novos produtos? Cria-se um sofisticado sistema de crédito (onde novas funções, novos empregos e, consequentemente, novos consumidores são criados) no qual o consumidor é explorado na sua vaidade ou no seu desejo de se destacar entre seus pares e instado a comprometer sua renda futura para se satisfazer de imediato na sua ânsia de se ver de posse daquelas necessidades supérfluas criadas pela própria sociedade que lhe facilitou sua aquisição. Colocam-lhe na mão um cartão de plástico mágico que lhe dá acesso imediato às cobiçadas mercadorias que reluzem por trás das vitrines. Mas obviamente esse sistema não se manterá sozinho e precisa ser sustentado com recursos e quem melhor vítima para fazer esse papel de sustentáculo do sistema do que o próprio consumidor, já que sua autonomia reflexiva está comprometida por sua heteronomia irracional? Basta então cobrar uma alta taxa de manutenção anual e juros estratosféricos enquanto ele está absorvido na admiração dos produtos desejados. Quando o consumidor no futuro se der conta, abismado, da amarga dívida que herdou e da enrascada em que se meteu terá que se desdobrar para delas sair, mas o sistema então já estará cooptando novos consumidores para seu jogo perverso. Como não se deixar enredar nessa roda consumista?

Para saber em que condição tomamos nossas decisões sobre nossas ações cotidianas, se na condição de autonomia ou heteronomia, perguntemo-nos então se elas estão sendo dirigidas por nossa própria vontade ou pela vontade da nossa religião, do nosso partido político, do nosso grupo étnico, do nosso time de futebol, da nossa indústria, da nossa loja, da nossa rede de televisão, do nosso ídolo, do nosso banco, do nosso vizinho, do nosso grupo de amigos, da nossa sociedade, enfim de quaisquer outras entidades que estejam no mundo exterior a nós.

Provavelmente se psicólogos e psicanalistas se embrenharem a fundo na questão encontrem alguma solução visível para essa dinâmica perversa presente em nós. Mas, enquanto isso, talvez o simples fato de nos darmos conta de que essa dinâmica existe em nós, de que somos presas fáceis de aproveitadores, sejam eles indivíduos, grupos sociais ou empresas, que conhecem essa fraqueza humana e dela se valem para nos aliciar e controlar em proveito de seus interesses quase sempre corporativos, já baste para que os identifiquemos e, assim, possamos tomar decisões morais melhores em nossas vidas, mais condizentes com nossa condição de seres livres e autônomos.

(*) Texto produzido para responder a uma prova da disciplina Filosofia Política II do primeiro ano de um curso de Filosofia que estou fazendo na UNESP de Marília.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 05/01/2009
Reeditado em 11/07/2022
Código do texto: T1368133
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.