ISABELLA VAI ESTAR MORRENDO

Odeio gerundismos! Mas, recentemente, até tenho me esquecido deles, devido aos acontecimentos mais recentes. Nós vamos substituindo os alvos de nosso repúdio, de acordo com sua ordem de importância. Em determinados momentos, fazem-se necessários, e expressam, da melhor forma possível, o que precisamos dizer. Tenho que me valer de um neste instante: Isabella vai estar morrendo.

A cada dia, a cada instante, Isabella vai estar morrendo. Morreu, morre e não acabará, nunca, de morrer. Pra nosso desgosto, pra nosso desespero. São Isabellas atiradas pela janela do 6º andar, como se se tratasse daquele lixo que as pessoas, inadvertidamente, não colocam nas lixeiras dos prédios, mas descartam pelas janelas, nas áreas comuns dos prédios. Isabella agoniza no nosso jardim. Será que as flores resistiram a tanta brutalidade? Ou se tornaram as rosas de Hiroshima?

Isabella vai estar morrendo. Moro no 7º andar. Todas as manhãs, quando vou à varanda, regar minhas plantas, vejo a altura da qual despencou seu corpo indefeso. Pensava que o frio que sinto fosse devido à temperatura do outono. Mas descobri, infelizmente, que se trata mesmo é de um calafrio. Bem abaixo, no 1º andar, há um pequeno jardim. Mas ele não está acessível a mim: pertence ao vizinho. Será que, se despencar de minha varanda, passarei a fazer parte do jardim que tanto me atrai? Será que ela se incorporou ao jardim aonde foi arremessada? Posso regar minhas plantas, mas não meu coração. Está seco, impenetrável. Não há flor que resista a tanta secura, a tanta aridez. Quem jogou Isabella? Quem matou Isabella? Não interessa. Foi o pai? As Isabellas são mortas, a todo instante, por um pai que abandona o lar, que as agride, que não se doa aos filhos. Foi a madrasta? Madrasta só deveria ser má nas histórias infantis. Foi a mãe? Há mães e mães. Há aquelas que embrulham os filhos e os colocam, cuidadosamente, em uma sacola de plástico e os jogam na Lagoa da Pampulha. Há, também, aquelas que adotam crianças e as educam em tempo integral, nem que, para isso, precisem deixá-las acorrentadas, decepar seus dedos, quebrar seus dentes. Poucas são as que, mesmo sem saber nadar, se atiram nas águas imundas do Tietê pra retirar um filho.

Isabella vai estar morrendo. Quem a atirou não interessa mais; o que importa é que ela foi atirada. Interessa que continua e continuará sendo atirada, diuturnamente, nas BRs, oferecendo seu mísero e impúbere corpo, à guisa de parcos trocados; nos cruzamentos, oferecendo balinhas; nas praças, enrolada em papelão, como se fosse presente da e para a sociedade.

Isabella vai estar morrendo. E continuará nos ferindo, nos matando, com um cigarro na boca, um pedido nos olhos. Refugiamo-nos em nossos carros, vidros fechados, ar condicionado ligado, mas ela é insistente, e bate e chama e pede e implora. Fechamo-nos em nossos apartamentos, mas ela nos sorri nas páginas das revistas, como se nos dissesse: vim pra te mostrar que eu existo, pra te fazer companhia, pra velar o seu sono, pra te acalmar na sua insônia. E o seu sorriso doce não nos insulta, não nos acusa. Muito antes, pede carinho. Nós é que nos sentimos acusados, acuados, insultados. Ela não nos deixa em paz.

E Isabella vai estar morrendo. Indefinida e ininterruptamente. Vai continuar sendo arrastada por quilômetros, presa a um cinto de segurança. Ou - quem sabe? - vai se jogar pela janela, fugindo de um pai bêbado. Nem sempre conseguirá, e terá sua cabeça esmagada contra a parede, pois seu pai se encontra drogado.

E Isabella vai estar morrendo, não nos poupando do sofrimento, com uma morte rápida e única. Insistindo em nos torturar, como se devêssemos purgar nossos pecados em vida.

Tenho duas afilhadas ainda bebês. Sentir o prazer de tomá-las nos braços é perceber o contraponto do corpo indefeso de Isabella sendo apanhado, nos braços, quando jogado no jardim. Logo no jardim? Mas jardim é lugar de flores, de infâncias. E ela era uma flor. Isabella botão ousa se manifestar, desabrochando no sorriso das demais crianças.

Isabella, a vida é bela. O fato de ela ter sido arrancada de você não nos exime da responsabilidade de a preservarmos, em nós e nos outros. Em seu nome. Perdoa-nos. Não tínhamos o direito de descarregar nosso insucesso, nossas mágoas, nossas angústias, nossas frustrações em você. Sua morte cala fundo nos nossos corações, nos mais variados corações, mesmo que outrora insensíveis. Sua morte ecoa ao longe: Isabella... bella... bella... bella...

Pabinha
Enviado por Pabinha em 15/04/2008
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