Criança Sabe Tudo
Apaixonada. Isto é, não exatamente apaixonada. Seria mais algo assim como “apaixonadinha”, já que ele era o irmão mais velho de uma das meninas com quem eu ainda brincava de casinha.
Assim, essa avassaladora paixão infantil acabou quando eles se mudaram para outra quadra, numa distância intransponível para quem ainda não tinha idade suficiente para andar de ônibus sozinha.
Alguns anos depois, lamentei quando soube que ele havia se tornado usuário de drogas e, por causa disso, acabara soropositivo. Mas minha vida já havia tomado seu rumo e logo esqueci o assunto.
Agora, eu estava recém-formada, empregada, namorando e, no exato momento, incumbida de levar minha sobrinha Juliana à casa da avó materna. Com apenas dois aninhos, ela era a primeira criança tão pequena que eu transportaria desacompanhada em meu carro.
Muito politicamente correta, eu a amarrei da melhor forma que pude no cinto de segurança de três pontos do banco traseiro do carro, já que, obviamente, não dispunha de cadeirinha.
Neste instante, aparece em minha porta... exatamente... ele. Lindo e maravilhoso como eu me lembrava. Um pouco mais magro apenas. Estava passando por lá para visitar um novo vizinho nosso que era seu amigo e, ao me ver, veio falar comigo e conhecer a criança que pensou que fosse minha.
Sim, eu já havia lido sobre as formas de contágio da AIDS. Sim, eu sabia que podia apertar-lhe a mão, dar-lhe um abraço e os três beijinhos no rosto como era costume na época. Sabia que ele poderia pegar a pequena no colo, fazer-lhe algum agradinho, sem perigo. Mas, diante da presença dele ali, tão próximo dela, entrei em pânico e o despachei rapidinho, entrando em seguida no carro e saindo atabalhoadamente.
Afundada em meus pensamentos, seguia lamentando minha estupidez e falta de tato. Sabia que ele havia percebido meu medo e preconceito. Percebi a sombra que lhe percorreu o olhar.
Lembrei-me então da minha pequena passageira que a essa altura já deveria estar entediada com o meu silêncio e, ao ver, num outro carro, um menino da idade dela, em pé, apoiado entre os encostos dos bancos da frente perguntei-lhe:
- Nossa, Juju! Que perigo aquele menino em pé ali, né? Onde é que ele vai parar, se o motorista tiver que frear bruscamente?
Ela, talvez aliviada em ter finalmente um pouco de atenção, respondeu, mais do que depressa:
- No hospital!!
Eu havia imaginado o pára-brisa do carro, mas ela certamente tinha razão e eu brinquei, fingindo admiração sobre o quanto ela era esperta por ter acertado a resposta.
E ela, feliz e orgulhosa:
- Eu sei tudo, né, tia?
- Sim, meu amor. Você sabe tudo. – eu lhe respondi sorrindo.
E pensei que, de fato, quanto a gente é criança, a gente sabe de tudo o que é necessário para ser feliz. Pena que depois a gente desaprende a maior parte.
Imagem daqui.