A Marca de Batom
Batom na camisa é difícil explicar. Mas pode ficar pior. Ainda mais se o dono da camisa é um completo idiota.
A turma do trabalho saiu numa sexta-feira para dançar. Foram a um lugar animado, muito grande, com música ao vivo. As mesas ficavam arrumadas em círculo, em volta de uma área espaçosa. Eles se acomodaram em quatro delas. Eram doze pessoas, sete homens. Conversaram, beberam e dançaram, animadamente, por horas. Uma noite entre amigos, divertida e sem maldade.
Num determinado momento, estavam na pista de dança em uma rodinha rebolante ao som de uma lambada. Até então, ninguém tinha, ainda, batom na camisa.
Porém, Taís, que estava ao lado de Manuel, o idiota que em breve terá essa marca indelével em sua vida, levou um esbarrão por trás e, desequilibrada, caiu, literalmente de boca, sobre o ombro do colega. Ao ver a incriminadora mancha vermelha, pouco abaixo do colarinho, ela se desculpou, muito embaraçada e se ofereceu para conversar com a esposa dele, para explicar o incidente.
Os amigos riam, dizendo que ele iria apanhar quando chegasse à casa. Manuel, porém, muito tranqüilo, disse que a esposa confiava nele e ele mesmo conversaria com ela. Não precisava que ela ou os colegas se envolvessem nisso. Todos ficaram admirados com a elegância com que ele lidara com a situação. Os rapazes sentiram uma ponta de inveja por ser ele assim, tão acima de qualquer suspeita, casado com uma mulher tão compreensiva e confiante. Imaginavam-se no lugar dele, tentando explicar às suas próprias consortes aquela comprometedora boca vermelha meio borrada, tatuada na impecável camisa branca.
Taís, por outro lado, sentia-se aliviada. Não queria mesmo envolver-se nisso. Já havia passado por uma situação bastante constrangedora anos atrás, em seu primeiro estágio, numa agência de turismo. Tinha apenas dezesseis anos e seu coordenador era casado com uma das guias, grávida de sete meses. Ávida por aprender o serviço, recebia com devoção as explicações do colega que, em contrapartida, era muito atencioso e educado. Essa relação, vista sob a ótica do completo desequilíbrio hormonal pelo que passava a futura mãe, adquiriu um significado bastante desproporcional e, numa bela tarde de sol, ao voltar de uma expedição com um grupo de turistas e encontrar o marido e a estagiária conversando em frente à porta, a mulher não se conteve e armou um escândalo, acusando Taís de estar tentando destruir sua família e roubar-lhe o marido. Isso aos berros, lágrimas e soluços. Empregados de outros estabelecimentos apareciam nas portas e janelas para assistir ao show. A menina foi salva pelo dono da agência, amigo de seu pai, que a levou para dentro da loja, enquanto o colega procurava acalmar a esposa. Ânimos aplacados, pedidos de desculpas aceitos, o episódio não teve maiores conseqüências, mas ela aprendeu a lição e desde então, procurou manter sempre uma respeitosa distância de seus colegas de trabalho. Especialmente dos casados. Se precisava telefonar para algum deles, ao ser atendida por uma mulher, já perguntava logo se era a esposa e, em seguida, anunciava-se como colega de trabalho, antecipando o assunto. E, sempre que surgia oportunidade, procurava fazer amizade com as esposas e namoradas dos colegas. Era o caso de Dalva, a mulher de Manuel. Haviam sido apresentadas numa outra ocasião festiva entre os colegas e conversaram bastante, uma enorme empatia surgida entre elas, que compartilhavam gostos e opiniões. Portanto, se ele quisesse, Taís conversaria mesmo com ela. Porém, libertada desta responsabilidade, procurou esquecer o assunto e aproveitar o resto de noite que ainda tinham.
Na segunda-feira, soube que Manuel estava dormindo na casa de um amigo. Perguntou, surpresa:
- Foi por causa do batom?
- Foi.
- Mas ele disse que conversaria com ela, que tudo se resolveria. – argumentou ela, mortificada.
- É. Mas quando ele entrou em casa, ela estava dormindo e ele mudou de idéia. Resolveu lavar a camisa. Não deu outra. Ela acordou e o encontrou no tanque, esfregando a mancha... Daí, não teve mais jeito. Ela não aceitou mais conversar. Trancou-se no quarto com as crianças e só saiu depois que ele arrumou uma mala com suas coisas e deixou o apartamento. Pior do que a mancha de batom é ser pego tentando esconder a mancha de batom...
Taís não podia acreditar. Quis ligar para Dalva, mas foi desaconselhada pelos colegas. Sentia-se mal, culpada. E impotente. Queria fazer alguma coisa, não podia aceitar simplesmente tornar-se o pivô daquela separação. Por um motivo tão bobo. Foi quando seu chefe a chamou para um canto:
- Taís, não esquenta. Não é a primeira vez que eles se separam e nem vai ser a última. Ele vive aprontando. Por isso ele quis esconder a marca. Por isso ele não quis que você falasse com ela. Ela não acreditaria em você, de qualquer modo...
Um pouco menos pesarosa, ela procurou concentrar-se no trabalho. À noite, na faculdade, passou algum tempo na biblioteca, à procura de um texto para interpretar na prova final da disciplina de cênicas. Folheou vários cadernos com roteiros até que se deparou com a fala de uma personagem feminina em um deles: “Homem nenhum num presta.” Lembrou-se de Manuel. Perfeito. É este. Pensou enquanto encaminhava-se à recepção para registrar o empréstimo do livreto. A frase era um atentado ao português, mas definitivamente, combinava perfeitamente com suas impressões sobre o espécime humano do sexo masculino naquela noite de segunda-feira.
Batom na camisa é difícil explicar. Mas pode ficar pior. Ainda mais se o dono da camisa é um completo idiota.
A turma do trabalho saiu numa sexta-feira para dançar. Foram a um lugar animado, muito grande, com música ao vivo. As mesas ficavam arrumadas em círculo, em volta de uma área espaçosa. Eles se acomodaram em quatro delas. Eram doze pessoas, sete homens. Conversaram, beberam e dançaram, animadamente, por horas. Uma noite entre amigos, divertida e sem maldade.
Num determinado momento, estavam na pista de dança em uma rodinha rebolante ao som de uma lambada. Até então, ninguém tinha, ainda, batom na camisa.
Porém, Taís, que estava ao lado de Manuel, o idiota que em breve terá essa marca indelével em sua vida, levou um esbarrão por trás e, desequilibrada, caiu, literalmente de boca, sobre o ombro do colega. Ao ver a incriminadora mancha vermelha, pouco abaixo do colarinho, ela se desculpou, muito embaraçada e se ofereceu para conversar com a esposa dele, para explicar o incidente.
Os amigos riam, dizendo que ele iria apanhar quando chegasse à casa. Manuel, porém, muito tranqüilo, disse que a esposa confiava nele e ele mesmo conversaria com ela. Não precisava que ela ou os colegas se envolvessem nisso. Todos ficaram admirados com a elegância com que ele lidara com a situação. Os rapazes sentiram uma ponta de inveja por ser ele assim, tão acima de qualquer suspeita, casado com uma mulher tão compreensiva e confiante. Imaginavam-se no lugar dele, tentando explicar às suas próprias consortes aquela comprometedora boca vermelha meio borrada, tatuada na impecável camisa branca.
Taís, por outro lado, sentia-se aliviada. Não queria mesmo envolver-se nisso. Já havia passado por uma situação bastante constrangedora anos atrás, em seu primeiro estágio, numa agência de turismo. Tinha apenas dezesseis anos e seu coordenador era casado com uma das guias, grávida de sete meses. Ávida por aprender o serviço, recebia com devoção as explicações do colega que, em contrapartida, era muito atencioso e educado. Essa relação, vista sob a ótica do completo desequilíbrio hormonal pelo que passava a futura mãe, adquiriu um significado bastante desproporcional e, numa bela tarde de sol, ao voltar de uma expedição com um grupo de turistas e encontrar o marido e a estagiária conversando em frente à porta, a mulher não se conteve e armou um escândalo, acusando Taís de estar tentando destruir sua família e roubar-lhe o marido. Isso aos berros, lágrimas e soluços. Empregados de outros estabelecimentos apareciam nas portas e janelas para assistir ao show. A menina foi salva pelo dono da agência, amigo de seu pai, que a levou para dentro da loja, enquanto o colega procurava acalmar a esposa. Ânimos aplacados, pedidos de desculpas aceitos, o episódio não teve maiores conseqüências, mas ela aprendeu a lição e desde então, procurou manter sempre uma respeitosa distância de seus colegas de trabalho. Especialmente dos casados. Se precisava telefonar para algum deles, ao ser atendida por uma mulher, já perguntava logo se era a esposa e, em seguida, anunciava-se como colega de trabalho, antecipando o assunto. E, sempre que surgia oportunidade, procurava fazer amizade com as esposas e namoradas dos colegas. Era o caso de Dalva, a mulher de Manuel. Haviam sido apresentadas numa outra ocasião festiva entre os colegas e conversaram bastante, uma enorme empatia surgida entre elas, que compartilhavam gostos e opiniões. Portanto, se ele quisesse, Taís conversaria mesmo com ela. Porém, libertada desta responsabilidade, procurou esquecer o assunto e aproveitar o resto de noite que ainda tinham.
Na segunda-feira, soube que Manuel estava dormindo na casa de um amigo. Perguntou, surpresa:
- Foi por causa do batom?
- Foi.
- Mas ele disse que conversaria com ela, que tudo se resolveria. – argumentou ela, mortificada.
- É. Mas quando ele entrou em casa, ela estava dormindo e ele mudou de idéia. Resolveu lavar a camisa. Não deu outra. Ela acordou e o encontrou no tanque, esfregando a mancha... Daí, não teve mais jeito. Ela não aceitou mais conversar. Trancou-se no quarto com as crianças e só saiu depois que ele arrumou uma mala com suas coisas e deixou o apartamento. Pior do que a mancha de batom é ser pego tentando esconder a mancha de batom...
Taís não podia acreditar. Quis ligar para Dalva, mas foi desaconselhada pelos colegas. Sentia-se mal, culpada. E impotente. Queria fazer alguma coisa, não podia aceitar simplesmente tornar-se o pivô daquela separação. Por um motivo tão bobo. Foi quando seu chefe a chamou para um canto:
- Taís, não esquenta. Não é a primeira vez que eles se separam e nem vai ser a última. Ele vive aprontando. Por isso ele quis esconder a marca. Por isso ele não quis que você falasse com ela. Ela não acreditaria em você, de qualquer modo...
Um pouco menos pesarosa, ela procurou concentrar-se no trabalho. À noite, na faculdade, passou algum tempo na biblioteca, à procura de um texto para interpretar na prova final da disciplina de cênicas. Folheou vários cadernos com roteiros até que se deparou com a fala de uma personagem feminina em um deles: “Homem nenhum num presta.” Lembrou-se de Manuel. Perfeito. É este. Pensou enquanto encaminhava-se à recepção para registrar o empréstimo do livreto. A frase era um atentado ao português, mas definitivamente, combinava perfeitamente com suas impressões sobre o espécime humano do sexo masculino naquela noite de segunda-feira.