Sobre o meu Orixá
   

               Se existem homens que adoram
                   o santo de madeira feito por eles,
                   eu adoro a pedra, o santo do negro,                    que é a natureza.
                               Meninha do Gantois




  1. Ainda tenho dúvidas sobre qual dos Orixás é o meu protetor. E já estou na Bahia há mais de meio-século! Em Salvador, como sabem os senhores, estão os Candomblés mais antigos do Brasil. Por exemplo, o famoso Terreiro da saudosa Mão Meninha do Gantois, na canção de Caymmi, "a Oxum mais bonita". Essa dúvida, portanto, já devia ter sido dirimida.
  2. Quando vim morar em Salvador, em 1957, só pensava em visitar um Terreiro. Entretanto, uma cruciante censura, gerada pela minha condição de ex-seminarista franciscano, impedia-me de fazê-lo. Só em 1961, levado por meu professor de Medicina Legal, conheci o Gantois.  Um espetáculo de devoção e beleza foi o que vi por lá.
  
3. Apesar de passar a conviver com respeitáveis adeptos do Candomblé ( na Bahia é assim!), a nenhum deles arriscava-me a perguntar se, por ventura, algum Orixá estaria a me acompanhar; a me guiar; a me proteger...
  
4. Um belo dia, lendo um Horóscopo, descobri, sem querer, que, como pisciano, eu tinha como Orixá regente ninguém menos do que Iemanjá. Fiquei orgulhoso. Logo Iemanjá? E havia coerência na informação, sabendo-se que os peixes moram onde o estimado Orixá pontifica como rainha soberana e absoluta, ou seja, nas águas e nos mares.
   
5. Com o passar dos anos, fiz uma saudável amizade com uma diligente e virtuosa Mão de Santo. Pedindo segredo, confiei-lhe que o meu Orixá era Iemanjá. Ela sorriu. E, sem perda de tempo, foi logo me dizendo: " Seu Orixá é Xangô ; não é Iemanjá." Por mais convincentes que fossem os argumentos encontrados no Horóscopo, não atrevi-me a contestá-la. Eu, hein?
  
6. Mas a dúvida persistiu. E até aumentou. Afinal, Iemanjá ou Xangô?  Pareceu-me oportuno conviver, numa boa, com os dois Orixás. Xangô seria mais um deus a cuidar do meu dia a dia; do meu futuro; do meu destino...   7. Mais empolgado fiquei, quando me disseram que Xangô, atento ao sincretismo, seria, na minha Igreja, São Jerônimo. São Jerônimo, ninguém ignora, nos deu a Vulgata - a Bíblia Sagrada em latim. Um trabalho, feito a pedido do Papa Dâmaso I, estendeu-se por 22 anos. Jerônimo morreu em 420, com 79 anos de idade.
  
8. Soube ainda que Xangô era o deus do relâmpago e do trovão. Vejam a confusão: ninguém tem mais medo de relâmpagos e trovões do que eu. Em dias de procelas, não saio de casa. Fico o tempo todo rezando e queimando os ramos bentos que recebera no Domingo da Paixão. Numa dessas barulhentas tempestade, até recorri a Xangô...
 
9. Mais alguns dias, ou melhor, no dia 2 de fevereiro, os baianos estarão na praia, prestando sua homenagem a Iemanjá. Presentes e mais presentes serão levados para o querido Orixá, e depositados nas águas misteriosas do mar de Salvador.Talvez dê um pulinho na enseada do Rio Vermelho, palco da festa, que, este ano, numa infeliz coincidência, cai no segundo dia de carnaval. 
  
10. Entusiasmado com a ternura do evento, de repente serei tentado a oferecer um espelhinho à rainha do mar. O farei sem maiores compromissos. Só espero é que Xangô, com ciúme de Iemanjá, não me abandone... Neste mundo velho - desigual e violento - quanto mais deuses a me proteger, melhor...

         

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 21/01/2008
Reeditado em 23/09/2019
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