AINDA SOBRE O OLHAR

UMA CRÔNICA SOBRE UMA CRÔNICA

Ângela Rodrigues - Cronista

Durante três semanas o cronista Raimundo Antônio brindou-nos com uma bela trilogia sobre "O falar do olhar". Acompanhei atentamente e gostei do que vi/li; este é um tema que sempre me atraiu: o olhar, o que ele nos diz, sugere ou simplesmente deixa de dizer, portanto não é dos olhos - as janelas da alma, que quero falar, mas do mistério do olhar. Hegel ao ser perguntado sobre o que se vê na manifestação de um olhar teria dito: "O abismo do mundo." Olhar é abrir a nossa janela e visitar alguém ou quando alguém vem à janela de si e nos visita, é se mostrar ao outro sem máscaras, pois dificilmente conseguimos "falsear"um olhar. Talvez por isso sejam vendados os olhos dos condenados à morte: seria intolerável ver o seu olhar. O que leríamos em seus olhos seria assustador até para o mais cruel dos homens. Até nós, algumas vezes, somos terrivelmente estranhos ao nosso olhar. Quem nunca se surpreendeu ao olhar para o seu próprio olhar no espelho? "Quem é esse ou isso que me vê, desde o abismo?" Essa estranheza nos assalta também diante do olhar de um animal: um cão velho e abandonado que nos olha não nos deixa indiferentes. Diante desse olhar pode erguer-se o sobressalto da pergunta: o que é e como é ser abandonado na velhice? Mas é o olhar do outro que é perturbador. Ele nos perturba. Há àqueles que nos olha com um olhar triste, olhar meigo, arrogante, de terror. Tem o olhar da súplica. O olhar de gozo. O olhar que baila num sorriso. O olhar concentrado. O olhar disperso. O olhar da aceitação. O olhar do desprezo. O olhar compassivo. O olhar do desespero. O olhar sedutor. O olhar envergonhado. Ah! O olhar da despedida final, do para sempre! O olhar morto, que já não é olhar! Seja qual for a forma como somos olhados, o olhar é sempre a presença misteriosa de alguém, que ao mesmo tempo se desvela e se vela.

A sensação diante do olhar de alguém pode ser de abismo (como disse Hegel), afinal ele - o olhar, pode nos paralisar diante da interrogação: o que é ser o outro? Por que a outra pessoa - o outro homem ou a outra mulher - não é simplesmente outro eu, mas um eu outro... O que é e como é ser o José ou a Maria, ver-se a si mesmo através do olhar deles? E como é o mundo visto a partir deles? E como é que ele ou ela me vêem? O quê e quem sou eu realmente para eles, a partir do seu olhar? E como é que eu sei que há no outro um olhar que me vê, mas que nem sempre eu consigo traduzir o que diz sobre mim? Nunca saberei.

Talvez por isso tenhamos tanto "medo" do olhar de Deus. Este olhar onipresente, que tudo vê e tudo sabe acerca de nossos olhares, para Nietzsche, o olhar de Deus é intolerável. Em A Gaia Ciência, ele diz: "Eu considero isso uma indecência:" Este olhar que nos vigia". Então, em Assim Falava Zaratustra, escreve: o Deus que objetiva o Homem "tinha de morrer, porque via com olhos que viam tudo. A sua piedade desconhecia o pudor: ele metia-se nos meus recantos mais sórdidos". Somos, pois, fruto do olhar do outro, nos construímos através do outro e o seu olhar é a forma como entramos em sintonia com este que nos constrói.

É certo que só vemos a nós pela mediação do outro. Sem outros "eus" enquanto "tus", não há eu. Entre mim e o outro há uma tensão dialética de distância e proximidade. Afinal a relação com o outro pode ser de rivalidade ou de aliança, de destruição ou de criação. Então, precisamente no olhar do outro enquanto próximo irredutível, de que não posso dispor, mas do qual preciso para construir-me, pode revelar-se o apelo misterioso da proximidade infinita do Deus infinitamente outro.

E o que dizer de nosso olhar diante das imagens? Sabemos que "as imagens fabricam ilusões". Assim corremos o risco de tomar a imagem pela realidade, por isso é importante desconstruí-las para termos um distanciamento crítico. Quantas leituras podem ser feitas da mesma imagem por diferentes olhares? Ou do mesmo olhar em momentos diferentes? Quantas mensagens, às vezes contraditórias de uma mesma imagem? Kant dizia que a beleza está no olhar do sujeito e não no objeto observado; Partindo desse principio kantiano, podemos afirmar que somos aquilo que o outro vê? Ou ainda, que só vemos no outro aquilo que existe em nós? Ainda há muito o que aprender sobre o olhar, entender os olhos é fácil, a ciência já nos disse muito sobre eles, mas o olhar... Sobre ele ainda temos muito o que desvendar. José Carlos Abrantes, em sua contribuição para o livro "A Construção do Olhar" diz que: "Se o olhar é construído também pode ser ensinado". Será? Será que podemos aprender a olhar? Do ponto de vista da aprendizagem cultural até concordo; o conhecimento nos permite "ver com outros olhos"; podemos quebrar preconceitos e ver de um jeito diferente muitas coisas, mas aquele olhar que fala, este pode ser ensinado? Arrisco a dizer que podemos aprender a olhar diferente, mas "o falar do olhar" é intrínseco ao nosso eu, não dependo do olhar do outro. Será?

http://www.gazetadooeste.com.br/ 06/01/2008.

As Crônicas de Raimundo Antonio podem ser lidas nos endereços abaixo:

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/761596

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/770960

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/780510

Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 07/01/2008
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T806597
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