Escrevo como um silêncio ao contrário

Seria doce morrer no mar se ele não fosse salgado, diz o besta que não conhece o canto da sereia. Ou a música de Caymmi. Não se preocupem mais com as bruxas, pois as mulheres viraram sereias. Acho engraçado como nada na história muda, mas se sofistica. Eu queria ser uma sereia quando era criança, a própria Iara de cabelos verdes como no Sítio do Pica-Pau Amarelo, a Lua em forma de gente do tronco pra cima. Eu não achava certo cantar para afogar os homens nos rios, enquanto todos sabemos que o pior afogamento não é por água. O mais antigo e eficiente método de tortura é nada além da paixão. Bem entoada, chega a ser sufocante. Há um abuso na harmonia perfeita que é capaz de matar. Até os seres mitológicos precisariam desafinar um pouco. Se tudo é perfeito, nada é perfeito. Tem de haver as nuances, que contemplam as falhas, que contemplam as belezas mais sinceras. Mas não. É um paradoxo juntar “lenda” e “verdade”. Mas as mulheres, e eu posso falar isso, são cruamente de verdade. E cruelmente também. A dor já vem embutida. E na falsa liberdade, por volta do meio século de vida, esses cinquenta anos de servidão são cuspidos feito fogo nas rugas que se formam em seus rostos.

Não nego que me intriga observar os homens que pensam saber o que se passa na cabeça de uma mulher. Pior, no coração. De tanto repetirem, acho que fomos nós quem nos tornamos o que antes era somente um eu lírico. Os trovadores que encarnavam os desejos das mulheres talvez tenham se tornado parte delas também, por sorte, pois esses são os melhores homens. Chico Buarque não seria metade do que ele é sem a sua persona feminina. É um domador da língua. Mas algo me diz que foi Marieta quem lhe soprou as palavras diluídas ao longo de sua existência.

Falando nele, há alguns dias estive pensando em um trecho de José Costa, Zsoze Kósta, Kaspar Krabbe ou do próprio Chico, já que são um só ser, que mostrou a imperfeita simetria entre o Rio e Budapeste. Entre um homem em dois e duas mulheres. Duas vidas. Duas línguas. Em comum, os finais: “e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado a sua blusa”. Algo assim. Algo escrito para ouvir sair da boca de uma mulher a palavra “admirável” dita em companhia dela mesma, entre um suspiro: “admirável… admirável!”. E foi isso que disse a primeira mulher do livro para o homem que não era o seu marido. Uma espécie de Madame Bovary dos trópicos, na cabeça do traído. Que também traiu antes mesmo de conhecer Kriska. Diria ser esse o pior tipo. Eu, que nada sei, mas que muito observo.

Penso ser o contraponto disso um outro verso, de um outro amante da língua da Camões: “não quero sugar todo o seu leite, não quero você enfeite do meu ser(…)”. Acho de um desprendimento total poupar o leite da mulher amada, embora concorde em não ser enfeite do seu ser. Pelo contrário. Eu, que sou impiedosamente involuída, temo querer pôr em meu cabelo as fitas do DNA do homem amado. Assim, como quem nada fez, desfilando sobre o peito nu de quem me abrigou. E minh’alma, cuja infinita melancolia eu já sorvera, me fez beber do leite derramado.