O anjo

Eram sete e alguma coisa da manhã. Daquela primeira manhã das minhas férias. Daquela manhã chuvosa de outono. Chuva abençoada. E não falo com sarcasmo. Assim como um dia de sol é lindo, um dia chuvoso também nos reserva uma beleza peculiar. Só não vê quem tem a alma míope.

Não havia ninguém na rua. Talvez por ser domingo. Talvez pelo horário. Nem a padaria estava aberta. Estranhei. O aromático cheiro do pão no forno é o despertador que a todos acorda.

Ao acordar, abri a janela do quarto. Sigo tão acostumado com a pequena segurança da cidade grande que esqueci de deixar a janela aberta daquela casinha alugada. Eu estava a duas horas da minha casa. A duas rodovias e dezenas de logradouros da minha realidade. A 180 quilômetros dos metros quadrados mais caros do país. A três cidades da minha origem. A vinte graus a menos de um insuportável verão perpétuo. A vinte e nove dias do retorno de tudo isso.

Abri a janela para encher meus pulmões com o perfume do mato molhado. Para premiar meus ouvidos com os cantos dos bem-te-vis, uirapurus e até das corujas que estavam no fim da boemia. Abri a janela para observar o entrelace da calmaria na íntegra.

Nisso, um anjo passou por mim como se estivesse passeando num sítio celestial. Juro. Eu vi um anjo. Vi duvidando da minha sanidade. Saí da janela. Cocei os olhos. Dei três tapas no rosto. Bebi água do filtro de barro. Será que a loucura resolveu me adotar justo no primeiro dia das férias?

Pelo sim, pelo não, abri a porta da sala. Olhei para os lados. Nenhum sinal dos mortais. Nem dos cachorros de rua. Mas o anjo caminhava. Lentamente, apreciando a beleza local. A chuva não cessava. Nem a minha incredulidade. Tive que sair, ainda de pijama, para comprovar aquela cena surreal de tão realista.

O que fazia um anjo ali, tão longe do céu? Pensei em oferecer-lhe um guarda-chuva. Ou sandálias, visto que eu tenho medo de piso molhado. Ora, se um anjo escorregasse, suas asas seriam acionadas. Gostei daquela humildade. Seria mais fácil voar. Mas não. O anjo fez questão de sentir não só a chuva como o chão banhado, não por acaso, das águas celestiais.

Seria um anjo da guarda? Difícil. Estaria guardando quem? A mim? Seria o meu anjo curtindo as minhas férias? Ou seria um anjo que estava de passagem só para vivenciar aquela cidadela que é o pedacinho de paraíso na Terra?

Em dado momento, precisei acelerar o passo uma vez que estávamos próximos. O que é a vida, não? Eu, mortal, perecível, perto de um anjo. Ou anja. Tinha aspecto feminino. Mas eu sei que eles não têm sexo. Enfim, eu já tinha muitas interrogações na cabeça, não seria sensato absorver outras.

O que devia perguntar? Como puxar assunto? "Bom dia, Seu Anjo. Vossa Angelitude o noticiário de ontem? Reparou que a única estrada dessa região está cada vez pior? Devemos confiar no padeiro que alega fazer tudo com massa artesanal, inclusive os sonhos? Por que "sonho"? E por que é frito, uma vez que nossos sonhos não são contra indicados?"

Acho que só um "oi" seria bastante. E também um breve pedido: "diga para Deus continuar nos abençoando, mesmo sendo seres errantes, com tantos pecados acumulados - e renovados - ao longo dos anos."

O que eu tinha a perder? Nada. Conversar com um anjo seria a maior realização da minha vida. Eu também queria ser um. Mas não faço ideia de quais são os requisitos.

Se você pensa que não tive coragem de me aproximar, errou, tanto que fiquei um tiquinho assim perto dele. Cheguei a esticar o braço para tocar-lhe o ombro. Mas o chão estava molhado, lembra? E escorreguei feio. Levei um tombo e lá fiquei a ver o anjo desaparecer em menos de um segundo, num súbito flash de luzes dourada e branca.

Não demorou um minuto e as pessoas começaram a aparecer. Mais um minuto e a igreja, padaria, farmácia, mercearia e banca de jornal abriram simultaneamente. As pessoas me viam com ar de desconfiança. O que faz um cara com pijama sentado no chão, na chuva, às sete e alguma coisa da manhã?

Como explicar para essa gente o que tinha acontecido comigo?

Tentando suavizar a vergonha, me levantei com calma. Disse para uma velhinha que eu era sonâmbulo. A vovó me benzeu e disse que chá de erva cidreira cura tudo, "de sonambulismo a unha encravada". Agradeci duplamente e voltei pra casa alugada. Eu realmente estava convencido de que a loucura havia me conquistado. Algum tempo depois, ainda triste e preocupado, voltei para a janela, desta vez segurando uma xícara de café. Decidido a fazer as malas o quanto antes e voltar para a cidade grande a fim de procurar ajuda médica, fui surpreendido por vários fatores que me fizeram sorrir aliviado.

O sol surgiu entre as nuvens e a chuva, expondo no céu um vistoso arco-íris;

O anjo tinha um perfume indescritível. E de repente, aquele cheiro estonteante ressurgiu;

Por fim, fui envolvido por uma misteriosa e agradável convicção: aquele encontro entre o anjo e eu foi real. E não foi o último.

Barão do Subúrbio
Enviado por Barão do Subúrbio em 21/04/2024
Código do texto: T8046597
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