Escrevo porque não canto

Eu nunca vou esquecer a sensação de entrar no carro de meu pai depois da minha primeira grande mentira. Não, eu já tinha mentido. Depois da minha primeira grande omissão, que chega a ser pior do que a inverdade. É a metade de uma verdade que já foi deturpada enquanto raciocinada, que dirá quando falada.

Esses dias, quando o inevitável tópico “relacionamento” invadiu nossa mesa de café (que não tinha café algum), eu comentei sobre um não relacionamento que tive com uma não pessoa em um não lugar. A única coisa concreta ali era a idade dele contrastando com a minha. Minha amiga disse que era errado. Não com essas palavras, com piores. Eu quis retratar, corrigindo-a. Eu sempre tô pronta pra corrigir, especialmente pra me corrigir. Mas depois de sete anos eu percebi que aquilo realmente aconteceu. Ele tinha a idade que eu tenho hoje. Foi um romance virtual porque as distâncias sempre me atravessaram. Mais virtual do que romance. Eu achava que era apaixonada, talvez eu tenha estado, mas não foi por ele. Eu não o conheço. Provavelmente adoeci pelo que ele inventou. Eu não sei se a paixão sempre se parece com isso, mas ela precisa mudar o seu modo de agir. Ou o meu corpo precisa mudar o modo de reagir.

Depois que eu entrei no carro, minha vontade imediata foi de contar que eu havia dado meu primeiro beijo. Eu estava tão feliz quanto imaginei que estaria. Ele provavelmente não. Nem foi um beijo de verdade. Mas pra mim o mundo inteiro parou só pra eu sentir que aquilo era muito melhor do que morrer mil vezes nas mensagens românticas que eu escrevia. Eu só não odeio aquela criança porque seria injusto comigo. Doía mais gostar dele do que quando eu precisei deixar de gostar. Nossa ideia de paixão é sofrida. Isso vem da paixão de Cristo. O amor ocidental é a maior droga da história da humanidade. E eu só não sou viciada por não ter experimentado direito. Digo, eu não considero goles mal dados. Se bem que misturar as substâncias é um problema. Acho que eu misturo muitas ideias. Ou ideais. Tanto faz, quero dizer que tudo está na minha cabeça. Como você. Que aparentemente é o único lugar possível.

Eu realmente não esperava que meu eu de 13 anos retornasse como se eu não o tivesse matado ainda vivo. Pois bem. O que me parece é que esta noite, assim como a anterior, vou dormir agarrada a um zumbi — que é uma categoria de criaturas pior do que os fantasmas. Não quero mais ter epifanias, quero ter memórias. Não quero mais ter desmomentos. Não quero mais precisar sonhar pra não ter que lembrar. E precisar lembrar por não poder viver. E não poder viver sabe-se lá Deus o porquê. Talvez eu esteja me desesperando à toa. Talvez as coisas demorem mesmo, não sei, faz sentido se lembrarmos que a gente não manda nem nos nossos sentidos. Eu vim ter amigos na faculdade, talvez eu viva uma paixão no final da segunda faculdade — o que me obrigaria a cursá-la — e um amor nos meus últimos cinquenta anos de vida. Ou nada disso.

Eu sei que as contradições me acham. Eu não procuro ser, o que por si só é uma contradição do destino. Não me culpo. Eu já dispensei tantas coisas, aliás, quase tudo. No entanto, o que é impossível de todas as maneiras possíveis me agrada tanto a ponto de me fazer mal. As distâncias me completam. Sempre morei fora. Fui pra mais fora ainda. Padeço de lonjuras. Gosto de quem me paga com mistério, mas a troca nunca é justa. Eu sou a pessoa mais inofensiva do mundo, mesmo que eu tenha todas as palavras apontadas pra você. Não faço estrago. Mas não posso dizer o mesmo por elas.

Eu sinto muito, mas não sempre. A última vez que eu me interessei por um cara foi possivelmente o maior golpe que já me aplicaram, inclusive com a ajuda de pai, que é um grande conciliador de desgraças. Esse menino me estudou como se eu fosse o vestibular da vida dele. A troco de que eu sinceramente não sei. Mas foi rápido. Eu logo me desencantei depois de ser obrigada por ele mesmo. Era um idiota em ascensão. Hoje ele é um magnata.

O segundo não me pegou pela conversa. Mas todos falavam tão bem dele. Eu não achava nada. Fiquei com ele, comecei a achar tudo. Tudo o que eu podia inventar. O mistério me ajudava. Eu achava que aquilo era finalmente a minha paixão da adolescência. E achava isso até anteontem, já que a pandemia me fez estar com dezesseis anos ainda. Eu não sei se ele gosta de mim, eu já tive sinais mais claros do que o nada. E mesmo com isso eu nunca cedi. Não sou contraditória, eu somente exerço o meu direito de ser humana. Hoje. De ser humana hoje, na pós-modernidade. Se agora é impossível ser, especialmente por a condição que carrego (ser mulher, mas é segredo), eu não sei se em algum tempo histórico o amor foi vivido plenamente. E a resposta é não. Os religiosos diriam que o único amor pleno é o amor de Deus. Os espíritas diriam que o amor mais próximo do amor de Deus é o amor de mãe. Concordo, mesmo que eu não acredite em Deus. Mas eu acredito em mães. E eu diria que talvez a gente não saiba amar, mesmo que tudo gire em torno disso. Talvez só a paixão exista. E o que chamamos de amor possivelmente é a paixão domesticada. Eu não sei. Eu não sei como cheguei aos vinte ainda nessa ladainha. Deve ser mesmo incurável. Ainda bem que eu não vim em busca da cura, e sim do convívio com a doença.

As últimas horas me lembraram disso tudo. Que eu ainda sou muito parecida comigo. Que eu ainda sou tão medrosa que prefiro estar em outro estado só pra deixar queimar o que eu nem fui atrás de sentir. Tudo me apavora, menos a ideia. Eu não faria nada contigo, a não ser te ver por poucas horas — com meus olhos, quando eles ajustassem o foco, com minhas mãos que escrevem e com meus lábios que eu nem sei se falariam. Eu que nunca gostei de despedidas sou adepta de partir, pois só assim pra poder chegar um tanto mais viva. De novo e de novo.

Eu não sei o que será de mim quando eu me permitir, mas não imagino quem teria tamanha coragem.