Cartas de Salamanca - De comidas, sabores, datas e uvas

Vez por outra, alguns amigos perguntam sobre os hábitos alimentares na terra de Cervantes... algumas coisas são bastante diferentes, é verdade. No almoço, por exemplo, além de uma entrada — geralmente saladas, caldo ou consumê — são servidos dois pratos distintos: o primeiro é sempre uma massa, ou lentilhas, ou alubias (nosso feijão). E de segundo, servem a carne, ou frango, ou peixe, com guarnição de batatas fritas ou alfaces. Nas principais refeições, o pão e o vinho são imprescindíveis, como acompanhamento. É até comum os restaurantes oferecerem o “vinho da casa” que, invariavelmente, ostenta boa qualidade.

Outras tantas curiosidades na gastronomia despertam nossa atenção. Como, por exemplo, o fato de alguns pratos ou iguarias possuirem ligação com dias específicos. Coisa que também temos no Brasil, mas, em menor intensidade, creio. Aos domingos a paella. Seja em suas próprias residências, ou não, a família espanhola não dispensa a tradicional paella. Arroz com mariscos, seria uma definição bem simplista. Claro que, tal qual acontece em relação à nossa feijoada, os ingredientes e os detalhes de elaboração são discutidos e valorizados à exaustão.

Se a paella é sempre considerada como prato de maior identificação com a Espanha, em Salamanca podemos citar dois mais representativos: jamón ibérico e honarzo. Inclusive, é fácil perceber a importância do jamón para a economia da região, seja pelos criatórios de suínos ou pela grande quantidade de fábricas de embutidos existentes por aqui. Jamón é presunto. Não o presunto como conhecemos, mas a própria perna ou espádua do porco, salgada, curada e servida em finas fatias. De preço elevado, diga-se de passagem.

Já hornarzo é uma espécie de empadão recheado com presunto ibérico, lombo de porco, salame, etc. Relembro, à guisa de ilustração, que outro dia falei, em uma dessas missivas, sobre o lunes de águas, ou seja, a segunda-feira após a Semana Santa, que é uma data salmantina onde os estudantes tradicionalmente fazem piqueniques, às margens do rio Tormes, tomando vinho e comendo hornazo, relembrando uma passagem histórica da universidade.

Roscón de los Reyes seria, em livre tradução, ‘rosca de Reis’ ou ‘bolo de Reis’. É típico do seis de janeiro (dia dos Reis Magos), servido especificamente no café da manhã, com direito a uma brincadeira, que é o fato de conter uma surpresa (um pequeno presente), que dará ‘sorte’ a quem encontrá-la em seu pedaço.

Huesos de santos ou ‘ossos de santos’. Trata-se de doces, cujo recheio é à base de pasta de nozes, que são elaborados especialmente para serem consumidos no primeiro de novembro, dia de todos os santos. Mudando do dulçoroso para o salgado, mas sem sair da alçada religiosa, existe um prato chamado potaje — citam-no também como ‘potaje da sexta-feira santa’ ou ‘potaje da Quaresma’ — que é um guizado feito com legumes, verduras, garbanzos (grão-de-bico) e outros ingredientes, que o torna adequado àqueles dias de abstinência a carne, conforme preceitua a tradição católica.

Para ornamentar a mesa posta em noite de Natal (nochebuena) e depois, claro, saboreá-lo, prevalece o cochinillo (leitãozinho) recheado. O peru e o frango também aparecem, porém em menor cotação. É plausível, aqui ou em qualquer lugar, em relação a pratos festivos (e em outras tantas coisas...), que o poder aquisitivo termine por ditar um escalonamento no rol de opções. Bem, ainda em relação às festas natalinas, percebo existir, nesse período, uma ávida busca pelo turrón, que é um doce em forma de tablete, feito de amêndoas e nozes tostadas, mesclado com mel e açúcar. Vejo que, excepcionalmente, barracas são montadas, nas proximidades do Mercado Central, para a venda de turróns e outras guloseimas próprias da época.

Na noite de fim de ano (nochevieja), os espanhóis comem uma dúzia de uvas (não vale comer uvas passas, advertem), ao ritmo das badaladas do relógio, correspondentes aos últimos doze segundos do ano que termina. Diz a tradição que cada uva simboliza um mês do ano que está chegando, e se houver problema na degustação de um desses frutos da vinha, o mês referente a esse que deu problema poderá não ser-lhe bom, em algum aspecto, ao comensal. No primeiro de janeiro é comum ouvir-se, junto aos efusivos cumprimentos, a simpática pergunta sobre a performance no saborear das uvas da noite anterior.

David de Medeiros Leite
Enviado por David de Medeiros Leite em 04/01/2008
Reeditado em 06/01/2008
Código do texto: T802706