Meu desejo se confunde com a vontade de não ser

Tentei assistir Alphaville, de Godard, mas falharam comigo. A internet. Logo num filme futurista, pelo pouco que pude observar. Mas a verdade é que eu só queria ver como aquela mulher linda aprende o que é o amor, pois talvez só em filmes isso seja possível. A vida segue uma pedagogia tradicional, quer dizer, da porradaria.

“Então, o que é o amor?, ele pergunta.

“A tua voz, os teus olhos, as tuas mãos, os teus lábios”, ela recita. Queria ver essa cena. Meu sentimentalismo me permite querer acreditar em certas falcatruas.

Mas que belo é ser ridículo, não? O amor, esse sentimento incomensurável e indefinível, foi reduzido a um diálogo entre pessoas que não existem. Talvez isso seja o mais próximo que chegaremos de seu significado: a tradução que a arte dá.

“É ferida que dói e não se sente”. Em que terra, Camões, que não se sente esse rasgar inconfundível do peito que abriga um coração pulsando no ritmo do nome de quem o enfeitiçou?

Se o amor é uma companhia, o que explica esse andar solitário entre a gente? Acho que somente os humanos sentem o amor não porque somos mais evoluídos do que os bichos, mas porque somos inexatos e contraditórios assim como esse sentimento que nos arrebata, arrebenta, arremessa e tantos outros verbos. Amar é, antes de qualquer coisa, um verbo. Um verbo que não tem pretérito. E que também não tem futuro. Amar. Tem de ser presente. Logo você, que precisa se encontrar. Logo eu, que fujo. Vida, a arte do (des)encontro.

Não me esqueço nunca de um vídeo antigo em que Tom Zé, um baiano tropicalista invocado que só ele, narra diante do objeto de seu mais desesperado desejo o porquê de ser um desejo desesperado: Gal. Ele morria de choques elétricos, de uma faca rasgando sua pele, do mundo se acabando — tudo isso pela presença que desintegrava e renovava a presença dele. Que entrava por seus poros. Que o arrebatava incontáveis vezes. Que era a presença mais linda em toda a natureza. Tudo isso Gal causava somente por estar ali. Cantando, então, era fatal.

Apesar de detestar a jovem guarda neutra e nada inventiva, às vezes Roberto e Erasmo Carlos acertavam. Principalmente na voz de uma mulher. Quando eu era criança, achava engraçado o modo grosso de se referir a quem supostamente se ama: “quantos idiotas vivem só, sem ter amor, e você vai ficar também sozinha”. Piora, pois tem o porquê: “sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo”. Mas na voz de Gal tudo não somente melhora, como também vira poesia. Tudo na Bahia se transforma. Lá sou quase feliz, quase livre, quase eu. Tenho em mim todas as feridas possíveis, venho de um lugar cheio de pesares e ainda anseio pelo retorno. Parece que sou sadicamente esperançosa.

Lá tudo é tão absoluto que vi em você o que ainda não sei se você é. Mas vi, e não somente vi como também senti, e por isso não tiro de minha cabeça a sua imagem de mistério, pois não me esqueço de olhos tão convidativos como os seus. Um convite não exatamente para mim, mas para a libertação do brilho acumulado naquele castanho. Senti seus cristais sobre minhas ideias. Meu lápis até hoje não renega a sua presença. E no meu peito a saudade é um desejo. Que é a saudade do lugar, uma erupção. Que é uma nostalgia, a lava. Que na verdade é uma dor que me atravessa. Depois, o nada. Eu sempre quis saber o que vem depois do nada.