Adornar a vida

Deveria ser “adorar” a vida, mas isso soa tão terrivelmente evangélico que fecha minha garganta — talvez por eu estar de fato doente. Estudantes não deveriam adoecer, a conta não fecha. Acho que a vida só é vivível porque a gente pode enfeitar, brincar de viver, pintar, bordar, ser arteiro — quiçá ser artista. Um grande acessório é a Bíblia, me perdoem, mas é. A religião é abstrata, mas sua força é de uma muleta muito real. Jesus, Deus, Jeová, o Messias, Alá, Jah, Xangô e o diabo, que seja, Gil não estava errado quando disse que prefere andar com fé. Mas que falha, falha. E falta. Não em minha bisavó, que a vida segue batendo com força no auge de deus 91 anos, mas ainda enche a boca pra falar de Deus. De fé. Ainda pede por água benta. Ainda dá audiência pra TV Aparecida às 18h, todos os dias, em qualquer situação. Mas também pede pra ir logo. Se somos incompreensíveis, Deus também é.

Eu que muito questiono o porquê da nossa existência, que nada somos em relação ao universo, me vejo como uma criança tola ao me queixar de tantas coisas. Geralmente isso ocorre enquanto eu vejo essa mulher, a matriarca, bordando suas coisinhas. Contando os melhores causos que fariam Ariano Suassuna sentar quieto, atento, ouvindo feliz. Pense numa contadora de histórias capaz de fazer com que a gente esqueça um pouco da dor que carrega, quem sabe ela se esqueça também.

Fico tristíssima por estar tristíssima em minha própria casa, na minha terra de contradições e ódios e amores e traumas e vontades e medos absurdos, no meu coração fora de mim. No meu tudo. E nem nisso eu consigo estar bem. Ainda. Tenho esperança, que é a forma de fé que eu consigo ter, de que é preciso me desorganizar (mais) para me organizar (de novo). Eu não sou do Manguetown, mas eu tô na lama também. Que Chico Science perdoe o verso emprestado. Também sou caranguejo atômico. Ou atônito. Ou atípico. Ou tudo isso, só que sendo um bicho outro qualquer. Sempre quis ser um unicórnio rosa saltitante, mas unicórnios não existem. Talvez eu queira mesmo assim. Faz sentido, já que eu sou mesmo quase uma lenda urbana.

Tem coisas que acontecem pra fortalecer, eles dizem, mas o que eu vou fazer com mais casca ao meu redor eu não sei. Talvez arrancar e deixar a ferida viva.

Eu gosto muito da coragem emprestada que o Dramin me proporciona, aliás, é só um conforto estranho. Não é coragem, não. Se o coração acelera, eu lembro que é bom ele parar. E que eu estou com sono. Viagens são sempre assim. Passei uma vida na rodoviária esperando meu segundo ônibus que não chegou. Envelheci uns dez anos ouvindo uma senhora totalmente apocalíptica reclamando de tudo, metendo processos hipotéticos em todos, resmungando sozinha e sendo estranhamente gentil comigo. Outra vida se passou. Fomos em outro ônibus, com duas gringas felizes demais para estarem sóbrias, e eu percebi que não chegaria em casa por tão cedo. Conversei com uma. A outra realmente não me ajudou com seu árabe. Ou hebraico. Depois que elas foram embora, eu apoiei meu pé em um chaveiro meio quebrado. Era uma lhama internacional, eu pensei. Acho que era dela. Peguei a minha nova companheira em mãos, guardei pra mim. Agora temo que ela seja uma lhama militar israelense. Ficarei atenta.

Ao ver um vídeo antigo de Gal Costa ontem, inevitavelmente lembrei da sinceridade de minha mãe. Há alguns anos, ouvindo os Doces Bárbaros, eu caí na bestagem de perguntar: “por que eles eram tão magros assim?”. Prontamente, ela respondeu: “maconha”. É claro que essa seria sua resposta. Mães e avós vêm com certas coisas embutidas. Tudo é droga, Deus e falta de Deus ou excesso de droga. Ri. Não tinha o que fazer.

Gal era lindíssima, afinada como um anjo, muito baiana graças a Deus. Era uma musa. Não acho que Sophie Charlotte é uma Gal Fatal, a própria. É uma Gal Leblon, da Globo. Inclusive, muito me comparam com Sophie. Não vejo lá muita semelhança. Especialmente porque sempre foco muito naquele queixo dela, tão lindo, com uma covinha. Eu não tenho.

Isso me fazia querer ser uma atriz de novela, das queridinhas, das mais lindas e enigmáticas. Uma Ana Paula Arósio com Letícia Sabatella. Alguém com presença. Alguém que teria sido inspiração de umas duas ou mais músicas de Caetano. Mas não. Eu sou a pessoa que escreve. Mas que deve ser bom ser uma musa, isso deve ser. Tem gente que nasce assim, eu penso. E tem um bocado na Bahia, como há de ser. Só me falta ser mais fatal que nem minha conterrânea, mas não no sentido de morrer, mas talvez no de matar quem me mata. Como, por exemplo, em vez de estar lendo o que pela milésima vez passaram pra gente — Theodor Adorno — cá estou querendo dizer que é preciso adornar a vida de enfeites, não de teorias. Eu gostava delas aos 13, aos 14, aos 15. Eu bebo café sem açúcar, mas a vida sem penduricalhos é completamente intragável. Nem que a gente precise pensar mil anos pra entendê-los, se é que vamos entender, mas saber que estão ali só porque a vida não bastou é inusitadamente reconfortante.

A propósito de nada, a escrita como razão de si mesma: é disso que eu vivo.