Não que eu queira sofrer

Não pude deixar de botar reparo naquele que me vi apaixonada uma vez, por loucura ou por ingenuidade, quando era mais menina do que deveria ser. Minto. Não fui eu quem o encarou. Nem vi. Não enxergo lá essas belezuras. Mãe disse que ele não tirou o olho de cima de mim. Como se a gente pudesse arrancar o olho e jogar em cima de alguém. Deve ser mais fácil assim: atirar um olho, uma orelha, um coração. Mas não me importei, não. Olhar é de graça. Me ler deve ser mais custoso. Só não mais do que a vida, que é a maior causadora de problemas gastrointestinais que a medicina já viu. Romantizaram o órgão errado, afinal. Quem abriga ácidas borboletas velhas é o estômago. Acho que a digestão disso é pior do que quando elas entraram, num sopro de vida, agonizando como o suspiro da morte.

Não desejo que insetos mortos nadem no sangue de ninguém. Fique em paz, tudo há de passar — eu diria. Eu também pensei que fosse me desintegrar a cada golpe. E olha só eu aqui, em frangalhos por dentro, mas quase cicatrizada. Vou passar a gostar mais das marcas em meu corpo, posso inventar histórias dizendo que me costurei como uma boneca de pano pra ver se eu aguentava o tranco. Quando eu rasgo, às vezes a linha não é da cor de minha pele — é mais clara feito a cor que a dor deve ter — e isso significa que eu ainda valho alguma coisa. Posto que não seja perfeita, sempre me agradou mais a imperfeição calculada da natureza.

Talvez eu gostasse muito menos de mim se eu fosse mais certa. Entortar-se representa a libertação. A dor curva pra estralar nossos sentidos, voltamos renascidos. Nada como estar zerado para ser pisoteado de novo. O espinho do sapato dói menos.

Depois de me expor ao ato de maior constrangimento que eu poderia passar com um estranho, e ainda pagando, percebi que me cubro à toa. É bom despir-se. De tudo. De roupa e dos medos. Nada melhor do que fazer o que a gente quer. Do corpo e da mente. Mas eu ainda ouço meu coração bater de desespero porque minha alma grita. Me recomponho. Retomo meu lugar em mim e, por alguns segundos, acredito que rezar faz milagre. Depois o sentimento volta e, com ela, vai embora minha fé. Começo tudo de novo.