À meia-noite levarei sua alma

Não, isto não é uma resenha. Quase não falo mais de filmes. Só não sou pior do que minha amiga que sequer os consome . O engraçado é que ela está encaminhada, eu estou definhada. Diferentemente de quase todos os estabelecimentos da era TikTok, eu não sou nada instagramável. Apesar de tentar me instagramizar na ilusão de que me expor ao vírus me fará mais forte. Que idiotice. Eu me sinto 10% menos esperta ao me conectar novamente ao submundo do multiverso Meta. Me sinto tão pouca coisa, como se a gente fosse muito mais do que pouco.

Viver impregnado nessa merda deve ser uma das 10 melhores (piores) formas de se matar. Sempre imaginei qual é a sensação de uma faca adentrando a pele, os músculos, rompendo um tendão. Não, eu não me mataria assim. Viver já pode ser uma tortura. A morte precisa ser rápida, de preferência indolor, quase indiferente, discreta. Não acordar deve ser a melhor forma de morrer. E de viver. Deve ser um eterno deleite não dar fé das coisas, como dizem os mais velhos. Simplesmente viver como se a tristeza fosse um sentimento de no máximo a metade de um dia, e olhe lá, de tempos em tempos. Cabeça desocupada. Coração pouco besta. Eu não sou pessimista, mãe, eu sou triste. E me entristeço cada dia mais por ter a pouca sorte de ler o mundo com uma nitidez ridiculamente escrota pra uma menina, uma criança, um bebê como eu às vezes acho que sou.

Me sinto completamente incapaz de praticar o otimismo se a realidade não me permite ser mais do que relativamente esperançosa dentro de circunstâncias limitadas ao meio sonho, já que o sonho inteiro é caro pra nós meros mortais.

Talvez eu pudesse morrer hoje. Ou me transformar numa doce criatura das trevas: uma vampira do sertão. Entrou não um, mas dois morcegos na área de minha casa. Insisti pra mãe entrar logo, que largasse as roupas onde estavam, mas ela não ligou. Ela, que é cheia de fé e de vida, me pareceu aceitar o destino de ser atacada por dois terríveis morcegos. E eu, que sem medo falo que queria descansar em paz, temi por nossas vidas. Ou por nossos rostos, pra ser mais realista. Mas não sei o modus operandi desse porco preto com asas.

Ontem eu falei um total de duas frases curtas, que jamais englobariam tudo o que eu sinto e que tenho passado, mas foi o suficiente pra que mãe retirasse a santinha de mármore de seu rack sagrado e a colocasse na mesa — junto de três velas. Eu, rindo de desespero, perguntei:

— Mãe, foi pelo que eu falei?

Respondeu quieta, com as mãozinhas juntas e olhos fechados:

— Cala a boca que eu vou rezar, menina.

E rezou.

Eu pedi então que ela pedisse a Deus ou a não sei quem que pegasse do barro e construísse meus amigos que mal tive nesse lugar. Ou que pegasse da mesma madeira de Geppetto.

Sim, eu profano. Minha fé tá igual a de José Inocêncio depois da morte de sua Maria Santa. Queria eu ter a força daquela pobre coitada. Aliás, força eu tenho inclusive no nome. Queria ter gosto pela vida hoje e fé, porque no meu caso só muita fé mesmo, pro futuro. Mas não posso crer no nada. Preciso de uma luz, de uma faísca de certeza, de uma mão que não me agrida, de dinheiro pra pagar meus tratamentos. Pois é. Não lamento sem motivo. Feliz eu sou fácil demais de agradar, mas pense numa seda, num docinho de coco baiano, numa pombinha da paz boa toda que só, numa criatura mansa não — besta. Feliz. Mas foi-se o tempo.

Espero que as quatro pessoas (olha o otimismo aí) que me leem não usem este texto como campanha do setembro amarelo. Todos os meses são amarelos pra quem lê Fernando Pessoa como se fosse seu alter ego em folhas avulsas de anos atrás dispersas na gaveta do seu quarto de criança.