Reflexões de um vestido

Foi assim que ela atravessou uma inédita crise de autopiedade. Sentia por sentir saudades, sentia por ser solitária, sentia por ser tão injusta, sentia por ser sóbria ao extremo. Sentia muito. A cabeça tão limitada aos problemas que sequer lembrou que estava usando, pela primeira vez, uma camisola daquelas de catálogo que certamente foi vendida por alguma mulher de meia idade que vai de porta em porta e que também vende Natura e bijuterias, às vezes Tupperware e algumas roupas de academia. Sim, era uma camisola da DeMillus que nem dela era. Foi repassada. Eu mesma nunca me importei, lembro que minha maior alegria era receber as roupas de minha prima que tinha todas as novidades entre todas as categorias: brinquedos, roupas, sapatos, maquiagem, cortes de cabelo. Ela era a minha musa.

Mesmo com uma roupa inédita, se é que aquele tecido finíssimo de borboletas com pequenos laços lilás pode ser chamado de roupa, não pensava mais como quando tinha quatorze anos. Não tirou foto, não se sentiu rebelde, não quis provocar ninguém fingindo ser o que não é, não quis se amadurecer como se o amadurecimento fosse uma foto sugestiva. Apenas pensou se fica ou se vai. Se for, morrerá de ansiedade antes mesmo de cair na estrada. Isso também é inédito, as coisas pioraram. Se ficar, matará a única pessoa que a suporta.

Foi então que ela percebeu que atravessava uma outra crise: o medo de amargurar-se. Duque era o apelido de uma pessoa que se perdeu na própria poça de veneno, que se afundou na própria lama e que cospe um tipo de ácido sulfúrico odioso em todas as suas irmãs, sobrinhos, primos e na própria mãe — uma sobrevivente da seca e de tantos lutos precoces que agora é obrigada a escutar os desaforos cruéis da própria filha. A dissonante. A que destoa. A ruim.

Eu mesma morro de medo de ser ruim pra sempre, pois às vezes eu já sou. De ser frustrada, pois às vezes eu me sinto. De ser amargurada, pois às vezes é esse o gosto que sinto. De ser alguém que se perdeu na parte sombria de si, disso eu morro de medo. Mais do que de cachorro, de polícia e de bandido — como diz Sérgio Sampaio. Acho que ele fala de dentista também. Mas já eu só tenho medo de cachorro, que na verdade é uma fobia; e da polícia eu tenho raiva; e de bandido eu tenho medo do susto que levaria; e de dentista eu gosto do meu. E de médico, que nem entrou na história, eu tenho raiva e tenho medo. Paguei tanto a minha língua que agora ele só precisa ser mais duas coisas da lista pra ganhar o bingo. Espero que ele não odeie engraçadinhas como eu.

Foi daí que ela sentiu que nada mesmo ia bem, pois seu maior prazer em meses foi comprar roupas. Adquirir vestidos. Na mesma loja em que comprou o vestido que ele tateou como se ela fosse um poema árabe em braille. Queria de novo, pra fazer valer a lembrança e recriar a memória, mostrar todos os seus vestidos. Um por um. Se quiser comê-los com os olhos, que faça. Se quiser arrancá-los mentalmente, que faça. Se quiser sentir o corpo de quem o veste, é preciso coragem. E eu sou medrosa. Tenho medo de cachorro, de polícia, de bandido, de médico e de você. E você, que não teme nem um médico cachorro ou um policial bandido, tem medo dessas besteiras que eu digo.

Mas é de se ter mesmo.