Fogueira de ventre

19 de dezembro.

Salvar o fogo. O título em letras maiores, a capa vermelha. Entrar numa livraria é sempre um lugar feliz. Tudo isso me fisga que nem a garotinha que vi mais cedo.

Ela era ainda bem nova, um ano, talvez uns meses mais.

Penso que deve ser de um labor eterno o lugar da mãe, nobre, sem fim.

Enquanto sua mãe trabalha, ela, a menininha, está sentada em sua cadeirinha de bebê. Um suporte a frente segura o celular, e os seus olhos vão brilhantes, mal moventes, capturantes da "Galinha pintadinha", sem nem piscar. Penso como deve ser difícil para os que nem pra amar tem tempo, precisam terceirizar o afeto.

Hoje é 23 de dezembro, aniversário do meu sobrinho. Fui numa loja de brinquedos, fui lá e fiquei tão hipnotizado quanto a garotinha de antes. Além das palavras, a fantasia, a criação imaginaria que nasce dos brinquedos, também cativa o meu olhar.

Adorava criar historinhas mil, sozinho, sempre. Os outros brincavam de um jeito estranho. Nada fazia sentido, nem tinha começo, meio e fim. Entro na loja. Nunca vi tanto plástico colorido, coisas girantes, bonecos, carrinhos, articulações, pistas, caixas, dinossauros e tudo o mais que pode conter a felicidade infantil, ou o capitalismo produzir.

A tarefa foi um pouco mais simples, se reduziram um pouco as opções já que ele gosta do homem-aranha, assim como eu já gostei um dia.

Agora já é 24, Natal, ou quase. 20:52.

Do mundo de fora do meu quarto, as coisas vão numa engenharia, numa maquinação faiscante. O Chester, a farofa, o arroz, tábua de frios, e todo o resto que eu não consigo nem elencar, existem pouco a pouco, um após o outro, numa alquimia culinária.

A comida é um momento singelo, unificador, a espera também. Só comemos no exato virar da meia noite, depois de se reclamar a fome "que não há motivo pra esperar até meia noite", depois de se por na mesa louças e talheres chiques, que esperam o ano inteiro pra isso, depois de vó fazer um discurso, e depois também de se cantar um parabéns pra Jesus. E aí, aí todos vão vorazes, devorantes, elogiosos a ceia. As vezes sobra até pros cachorros uns restos finais do pernil

Nunca fui religioso, mas tem um pouquinho de mim que adora tradições. De certa maneira, essas coisas, essas repetições, esse nunca-mudar, dá algumas certezas pequenas pra gente. Umas lembranças que são como névoa até. A nitidez da memória pode se perder, pode-se até não lembrar com clareza daqui a trinta, quarenta anos, mas eu vou saber que estivemos na mesa todos, que minha vó, meses antes, falou como sempre, categórica; "esse ano não vai ter natal"

E, como sempre, esse ano teve Natal.

Antes falei das certezas pequenas, mas agora, com 23 anos, as incertezas são tão agudas e gigantes como nunca. Nunca soube tão pouco sobre quem eu sou como agora, nunca soube tão menos de mim como agora. Ontem vi cenas de sonho que, quando acordei, me incompletaram ainda mais, (talvez depois eu escreva sobre elas), talvez, daqui a uns dez natais a mais, a minha cabeça já tenha se montado e desmontado, se feito e refeito tantas vezes, que eu já conheça as pecinhas, os atalhos, já saiba me virar e me fugir. Por agora ainda não.

Mas acho que eu tenho que ir, é melhor me arrumar agora, no Natal aqui fica um zumzumzum caótico, as filas pro banheiro são quase uma dobra no tempo.

Antes de dar tchau, lembrei de uma música do José Mario branco, um português. Em certa altura, a letra diz:

"Ao fazer-se, o mundo nasce de si próprio

Ser avô é uma alegria atravessada"

É impressionante como quase sempre, a vida brota por si só, e as crianças, os sobrinhos, são assim o exemplo inteiro disso.

Que o meu cresça sabendo um pouco mais de si, do que eu entendo de mim hoje, que encontre um mundo menos incendioso de queimar, e mais de fogueira de ventre, de esquentar, acalentar.

Feliz Natal.