Viajando na Canção

A introdução da música ressoa no alto-falante. O piano inunda o momento de emoção e um coração responde acelerado. Um frio paira na nuca, os pelos dos braços se arrepiam. Pensamentos desvairados toldam-lhe os olhos e as pálpebras se fecham, como cortinas a encerrar o primeiro ato. Há uma gama de sentimentos confusos, numa fusão de tempo e movimento, tal qual um palco giratório, transportando-o ao cenário dos sonhos. Semblantes iluminados logo saltam-lhe aos olhos. E ele vagueia pelo clube. Tão jovem! Tão bonito! Tão cheio de sonhos! E o ambiente está tomado pela energia vibrante da Hora Dançante. O instrumental é tão rico e tão contagiante que as colunas, as paredes e o teto parecem estremecer de entusiasmo. Todos se entregam à magia. Céleres, passam vultos e um rumor de vozes, na mais completa euforia, por um instante, abafa os acordes. Amigos, em volta de uma mesa, sorvem, em goles de afeto, um vinho especial, com gosto de amizade. Poás, por todos os lados, enchem a noite de graça.

A esta altura, a pista de dança está lotada e alguém circula esfuziante e transbordante de beleza, em seu vestido azul. Ele a acompanha com o olhar, mas, não é o único que a nota e a deseja. Outro se levanta, deixa o drink repousando sobre a mesa e caminha apressado. Não há tempo a perder. A equidistância acalora a competição. Vão quase juntos, abrindo caminho, de encontro à pleiteada. Mas, estava escrito que a aquela seria a noite dos seus sonhos. O cupido, bom moço, intercede em favor e os olhos se encontram. O momento não assente hesitação, pois a música não pode esperar e o rival não pode toldar seu céu de ilusões. Numa fração de segundos, estende a mão e entrega-se num sorriso tímido.

“We skipped the light fandango / Turned cartwheels 'cross the floor”.

Não, eles não dançam um fandango, mas, de rostos colados, mãos geladas, com hálitos quentes, sussurrando palavras nervosas; rodopiam suavemente pelo salão. O jovem recém-formado, recém empossado como funcionário público, confidencia-lhe o desejo de namorar sério, para casar-se. Ela, então, fala de seus sonhos e revela-lhe os pudores. “If music be the food of love” (Se a música pode ser o alimento do amor), A Whiter Shade of Pale, nutre uma grade e eterna paixão.

O melhor amigo levanta um copo, sinalizando:

- Um brinde à sua conquista.

’The room was humming harder”. (O barulho no salão ficava maior). O eco da emoção, com sua força avassaladora, toca mais forte no coração e quase transborda pelos olhos.

“And so it was that later” (E foi aí que, mais tarde). Fade out! O volume diminuindo, diminuindo, e a música chegando ao fim. O palco giratório da vida estanca. Não há mais o clube, nem a Hora Dançante, nem o melhor amigo, nem o rival, nem ela, tampouco a juventude, só vultos fantasmagóricos; só o resgate das emoções despertadas.