Entre o crime e o castigo

Minhas unhas da mão direita estão com o esmalte que antes era vermelho, rosa. A cor desbotou durante mais uma batalha contra um inseto horroroso que certamente entrou pela porta da frente (que nunca fica totalmente protegida) como se fosse um príncipe. E morreu sendo o que é: um bicho atrevido. Talvez eu devesse ser um bicho atrevido, deixar de ser arredia. Talvez.

Não posso consertar minhas unhas (não que elas estivessem bonitas antes) porque derramei um vidro de acetona sobre seu exoesqueleto. Foi a arma que estava ao meu alcance.

Cena do crime: por volta das 19h, eu estava tentando terminar a introdução de um artigo que estou escrevendo. No meio de uma palavra, olho pra porta do quarto e me deparo com uma visita que há muito tempo não recebia. Confesso que não pensei em ser cordial antes de atacar, eu só pensava em matá-la e limpar novamente a casa.

Estava descalça, pulei da cadeira pra cama e calcei uma sandália qualquer. Foi estranho estar usando somente sandálias (ao contrário) e uma camiseta de Pink Floyd. Sim, é horrível usá-la. Vesti umas duas vezes em público e me canso só de lembrar quantos homens aleatórios brotaram surpresos ou nostálgicos sobre isso. Poderiam ficar quietos. Tão quietos como está a vítima da acetona, da sandália, da cadeira, da vassoura, da pá e da água sanitária que agora jaz em seu túmulo, vulgo o lixo.

Me fiz adolescente e honrei a minha idade ao assistir aquela série sobre coisas estranhas. Na verdade, falto a metade do último episódio ainda. Certa vez ouvi um estudioso de cinema chamá-la de “mais ou menos”. Além de questionar o possível fim do “mais ou menos”. Mas não. Acho que o mediano é importante. Se tudo é bom, nada é bom. A genialidade e a excelência existem porque o genérico e o medíocre existem. A série das coisas estranhas que acontecem entre as décadas de 1970 e 1980 não precisa ser excelente, eles têm o povo. Não precisa fazer sentido, não precisa ter um roteiro bom, não precisa ser lógica. Só precisa ser adolescente, violenta, lançar estrelas mirins em Hollywood e ter uma boa equipe de marketing. E é assim que a gente faz no mundo audiovisual.

A gente não, eles. Eu sinceramente me questiono todo santo dia se sou louca ou se algo extraordinário ainda acontecerá comigo. Como uma resposta. Sim, respostas são extraordinárias, pois eu nunca tenho uma. Eu caminho porque caminhar é preciso. Mas eu não sei de absolutamente nada e ando, sim, mas sem uma muleta sequer. Nem Deus e nem a droga. É difícil seguir no escuro. Ou no falso clarão que se apaga quando estamos no meio do caminho.

Acho que a hora de falar dele sempre chega. Não tem como não falar. E eu não estou falando, mas estou dizendo ao mesmo tempo. Deixo aqui registrado que meu pensamento, que é tão extenso quanto infinito vezes infinito e tão complexo como a natureza humana em seu estado puro, dá voltas e voltas e não se esquece de regressar aos desmomentos com ele. Eu penso nele tanto quanto eu penso. Entre aquecimento global, artigo, futuro, religião, doença, política, caos, tristeza, psiquiatra, mais doença, fome, miséria, medo, cachorro, apartamento, roça, morte, biquíni, cabelo, cesta de café da manhã, carro, desemprego, Inteligência Artificial, Dom Quixote ou Raskolnikov, está ele. Entre cada linha de cada pensamento, está ele. E se um dia eu esquecê-lo, não importa, levarei comigo no esquecimento.

Se é recíproco? Mas é óbvio que não. Um samba com beleza só é belo porque é triste. O mesmo acontece com os escritores. Eu não sei o que seria da literatura sem os tristes, os malucos, os desajustados, os desassossegados e os que falam de paixão de um jeito em que o pesar se dilui nas palavras. Entre a dor e o deleite, a poesia. Entre ele e eu, também a poesia.