Coisas findas

Por livre e espontânea vontade e autocrítica, me assumo como uma farsa. Anos de formação em História, literatura crítica do capitalismo e do sistema liberal, não foram suficientes para me impedir de ser totalmente afetado por ele: o marketing do natal. Certo, certo, o calendário aponta que ainda estamos na segunda semana de novembro, mas o meu relógio biológico me avisa apenas compreende que faltam seis segundas para a maior festa religiosa do mundo ocidental, e daí que uma semana depois já será revéillon, a grande festa do mundo ocidental. Tudo isso pra dizer que estou me escorando nas reflexões de fim de ano pra dar uma choradinha com a nostalgia de assistir comerciais antigos de natal, e de certo modo, também refletir sobre tudo o que se viveu ao longo deste ano.

E aí que dia desses eu estava ouvindo Killing me softly with his song, e me lembrei de alguém que, ao rever um clipe da Dua Lipa, disse que ele tinha cheiro de pandemia, por ter sido um hit durante o infeliz e inesquecível ano de 2020. Ficou na minha cabeça. Killing me softly tem cheiro, não é de pandemia, é de esperança. A música, na versão de Roberta Flack, chegou até mim em um dos momentos mais conflituosos e difíceis da minha vida. A letra em si pouco ou nada se encaixava àquele contexto. Eu não estava sofrendo por um amor que me matava com suas músicas. Mas a função da arte é tocar e não explicar, e sendo assim, a melodia, os acordes e a voz de Roberta me traziam a mais pura e genuína esperança.

Para alguém que se considera muito cético e pouco crente, fiz dessa música o meu culto. Cantando sobre esse amor, encontrei forças todas as noites para seguir lutando no dia seguinte. E daí que agora, com o natal na porta, e a minha farsa vindo à tona, estou me permitindo avaliar como as coisas mudaram de um ano para cá. Não acho que as coisas foram fáceis, mas sim que foram possíveis. Deu para vivê-las. Deu para fazer além do que foi possível. Inclusive, deu até para sonhar.

Da primeira vez que ouvi a música, não achei que ainda desse para sonhar. Sequer acreditei que aquele desespero fosse passar. Mas passou. Não achei que aquele desamor fosse passar. Mas passou. Não achei que fosse melhorar. Melhorou. Não esqueço nada desse período porque são memórias, são registros da História. São registros da minha história e História. As recordo para lembrar de onde vim, onde cheguei e para onde quero ir. É um retrato em branco e preto do percurso que percorro.

No fim, esse texto não é nem sobre Killing me softly e nem sobre o natal; no fundo, ele é só sobre a nostalgia de quem está aprendendo a se orgulhar do seu próprio caminho. No fundo, como disse Guimarães Rosa, é sobre ter coragem.

Mas idealmente, vou como Drummond:

Mas as coisas findas,

essas muito mais que lindas,

essas ficarão.

Pedro H Ribeiro
Enviado por Pedro H Ribeiro em 06/11/2023
Código do texto: T7925528
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