Palavras vãs.

Da última vez que alguém de minha família morreu eu era criança. Uma criança facilmente enganada com Barbies e seus adereços, eles pensavam. Mas não. Eu sabia exatamente que aquele alguém tinha ido embora. E que essa partida era trágica. O que não quer dizer que eu, de certo modo e com muita cautela, não gostava de ter acesso aos brinquedos de minha prima. Ela sempre teve tudo que fazia meus olhos brilharem. Como sempre, eles brilhavam em segredo.

Todos queriam me afastar da casa de minha bisavó quando isso ocorria, que era o centro do mundo. (Era o centro do meu mundo). Eu achava triste, eu via o pesar se apossar de quem eu mais amava. Eu sentia tristeza da tristeza alheia. Eu sabia que a morte era algo que volta e meia acontecia, sabia que era sempre no cenário da casa de minha bisavó e que eu iria brincar com as Barbies mais modernas da época. Nada mudou.

Brincadeira.

Primeiro que eu ficava sem jeito, eu tinha noção de que aquilo não era uma situação comum e não conseguia aproveitar os brinquedos. Eu queria fazer perguntas, mas eu sentia que todos estavam tremendo por dentro. E perguntas estremecem.

Na quarta-feira, eu fiquei estranhamente triste. Véspera do dia de finados. Se eu acreditasse em coisas que não fazem sentido lógico, eu diria que coincidências não existem. Mãe diz isso. Pensei ser por um vídeo que vi na faculdade sobre a “síndrome dos braços vazios”. Basicamente, histórias de mães que sentiram o inenarrável “revés de um parto”. Não tem como não lembrar de vovó. Não teve como não enxergá-la naquela dor definida como uma faca fria que, não satisfeita ao adentrar sua barriga, é macerada inúmeras vezes. Em vez de sangrar até morrer, você sangra sem sangue todos os dias e morre em vida.

Quarta-feira foi o dia em que uma das filhas de minha bisavó passou mal. Para quem era daquele jeito, passar mal significa muitas coisas. Eu não soube disso. Na sexta, fui advertida. Não informada. Fui conformada. No sábado, fui notificada. Se quem teve fé não a segurou, imagine eu que despretensiosamente acendi minhas velas e fiz minhas orações tronchas. Mas foi de coração aberto. Foi com boa intenção.

Ninguém desejava que ela ficasse. Mãe me disse que ela estava sofrendo, que - entre tudo aquilo que define um ser humano - ela só respirava. Antes de ter passado por isso, ela também só respirava. Não conhecia o mundo além da calçada de casa, do quintal e dos livros de pintar. Não conhecia, eu suponho, a pessoa que ela era. Mesmo assim, ninguém quer que vá embora. Ninguém espera que parta.

Pensei e penso muito em minha bisavó, que é um forte impulso de vida que nos alinha enquanto família. Ela sabia que foi melhor assim, então quem sou eu pra não achar que foi? Ela sabia que, sem ela, essa filha não poderia viver. Então, ela viveu e morreu na presença de sua mãe. Romantizar isso não é pra mim. Quem tem essa fé quase inabalável que diga que “os planos de Deus são perfeitos”. Eu não sei se “Ele” existe, aquele que crê também não sabe. Não posso provar que não, tampouco podem me provar que sim. A diferença é que eu acredito que não exista. Mas eu penso que algo de muito esotérico e metafísico paira sobre nós. Se somos incompreensíveis, o que está além é muito mais.