Favela da Maré/RJ em pauta

Os "marinheiros de cabrestos" foram aqueles levados às pressas para substituir os que foram expulsos na Revolução de 1964.

Eu era um desses: "residente", “crônico", "mexilhão", etc. Termos náuticos aplicados a tais marujos que residiam a bordo do próprio navio em que trabalhavam. O meu ficava sediado no cais do Arsenal da Marinha, na Baia da Guanabara.

As lavadeiras tinham a permissão de adentrar ao Arsenal às terças e quintas feiras e irem até o cais dos navios para transmutar as roupas de tais marinheiros "crônicos".

A minha lavadeira, que não era de faltar, já fazia duas semanas que não aparecia e eu estava simplesmente ficando na "onça" de roupas limpas. Todos tínhamos seus respectivos endereços para qualquer eventualidade como, por exemplo, uma partida de emergência do navio.

Quando soube que sua falta era por motivos de saúde resolvi "baixar terra" e ir a sua casa. Era na Favela da Maré. À época famosíssima por seu nível de miséria. Hoje as favelas são famosas por seus níveis de violência. De qualquer modo nunca havia estado antes ali nem em qualquer lugar como aquele ali. Confesso, fiquei estarrecido ante o quadro.

Eram as casas tipos palafitas, paliçadas sobre a lama fétida de antigos manguezais da Baía da Guanabara. Caixotes tipos três-por-quatro desajeitadamente suspensos sobre a lama. Com piso de tapume e anteparo misto de tábuas, zincos e papelões.

O quadro ficava mais desolador porque a maioria daqueles moradores era de lavadeiras, as quais tinham que entregar, incondicionalmente, aos clientes, roupas limpas e cheirosas.

Aquela favela inda me faz lembrar do martírio da cruz. Por ter sido a cruz um tipo de pena onde a vítima era elevada do solo em sinal de desprezo pela sociedade. Também ali, na Maré, a vítima não tinha direito nem de tocar na lama fétida do solo como propriedade.

Uma cama de solteiro num lado da parede, fogão no outro e mesa no meio dividiam o três-por-quatro da lavadeira em "quarto", "sala" e "cozinha." No canto da parede, um buraco sobre o tapume dava indicativo de sanitário. Depois disto, tudo eram roupas. Roupas secas sobre a cama, molhadas sobre a bacia, passadas sobre a mesa e roupas sobre as roupas que eram as esticadas sobre varais dentro da própria casa, por não haver terraço nem varanda, mas tão somente lama. Cruel!

O mais difícil mesmo, de todo aquele trabalho de roupas, era o de se conseguir a matéria prima: água. Esta além de ser obtida por favor, era transportada em galões sobre a cabeça e sobre um frágil estrado de madeira.

E o mais curioso disto tudo é que nós, em sociedade, nos acostumamos sujar nossas roupas nos prazeres dos excessos, mas não as estamos lavando em casa. Pelo contrário, as entregamos a essas vítimas da sociedade e exigimos que cada, mesmo em sua escassez de recursos, nos entregue roupas limpas e perfumadas...

Me and my wife
Enviado por Me and my wife em 03/10/2023
Código do texto: T7899929
Classificação de conteúdo: seguro