Fazer exame é sempre um evento canônico

Era de manhã. Terça-feira. O dia em que às vezes pensamos ser segunda-feira. Mas não. É apenas a insossa terça.

Quem é de trabalho foi trabalhar. E quem é de estudo foi estudar. No momento, eu sou de férias. Não estou, sou. É um estado de espírito. Estado que inclusive aproveito pouquíssimo. Sou ridícula. Aproveito pouquíssimo a vida, a liber(i)dade. Só não digo que não me aproveito porque eu me aproveito bastante. Os outros, não.

Hoje foi o dia em que me submeti ( fui submetida) à tortura que um exame de sangue pode nos proporcionar. Odeio. Odeio tudo do universo da medicina, exceto pela saúde. Claro. Pra ser médico, por favor, só se a pessoa tiver vocação. Mas pra ser enfermeiro essa necessidade transcende: é preciso exercer a santidade. Imagina manter a plenitude, a serenidade, o profissionalismo, a técnica e sobretudo a paciência pra tirar sangue de um bebê. De uma criança. De um idoso que não sabe onde está ou de uma jovem criança de 19 anos. Essa última sou eu. Se alguma criança ficou sem a agulha infantil, sinto muito (não sinto), pois ela foi utilizada em mim. E mesmo assim posso afirmar que jamais faria esse exame sozinha. Eu preciso de uma mão pra apertar conforme a dor que eu sinto. Eu aguento muitas coisas, mas não dores finas. Meu cérebro desperta todos os meus sentidos para o mal. Sinto tudo, sou sensível. Isso é ótimo pra algumas coisas, inclusive pra data comemorativa de ontem, mas pra dor é terrível. Aliás, é um desconforto. O desconforto me dói mais do que a dor.

Antes da cruel extração de sangue do meu pobre organismo, cuja necessidade é inexistente - visto que eu sei que meu problema está na cabeça - não pude deixar de rir absurdamente de toda e qualquer situação que acontecia naquele laboratório. Naquele vale de lágrimas mal gerenciado. Eu realmente não tenho maturidade pra aceitar a falta de privacidade desses lugares. Ri disfarçadamente de todo idoso que foi obrigado a responder, em alto e bom som, se fez ou não algum tipo de esforço físico durante as últimas 72 horas. Vago, sim, vago. Mas a recepcionista, que também exercia todas as outras funções, explicitou direitinho o que ela precisava saber. Entre os esforços, ouvi um “andar de bicicleta”, “andar a cavalo” ou ter “relações sexuais”. Etarista que fui, pensei que não era possível que aquele senhor - naquela falta de esbanjamento de vitalidade - aguentava muita coisa. Certa estava. Ele, tímido, respondeu: ontem eu fiz fisioterapia. Fofo. Claro que fez. Já teve um outro que, ao ouvir as ensurdecedoras palavras “relações” e “sexuais” na mesma frase, precisou anunciar para todos os presentes nesta manhã de hoje que, infelizmente, ele teria que voltar em um outro dia. Não satisfeito, o senhor retornou à recepção e disse que - na verdade - ele poderia realizar o exame. Eu realmente não sei como alguém não tem certeza se teve ou não qualquer tipo de contato sexual com outro ser humano. Eu não esqueço um olhar, que dirá o sexo em si. Mas eu sou praticamente a Virgem Maria, então a minha opinião não é muito confiável. Aliás, Deus me livre (literalmente). Não quero ser uma Virgem grávida do bebê que depois seria o cara mais deturpado de toda a história da humanidade. Passo. Fico só com o “Maria” mesmo.

A recepcionista respondeu que, pra realizar os exames, o senhor precisava ter coletado a urina. Prontamente, ele retirou do bolso da bermuda uma sacola grande - daquele plástico grosso - muito bem enrolada que continha (adivinhem) um coletor com a urina dele. De quando? Não sei. Prestava? Provavelmente não. Esperamos muitas horas lá. Fiquei pensando em como ele estava andando tranquilamente com aquele material no bolso. Nunca vi tamanho disfarce. Mas a discrição acabou logo quando ele atirou essa sacola enorme por cima do balcão.

Também não me contive com um jovem, bastante desprovido dos ideais pós-modernos daquilo que entendemos como “belo”, que foi com uma sacolinha extremamente transparente contendo um coletor igualmente transparente que abrigava algo que parecia ser os excrementos de um cabrito. Ele, não sei por qual razão, andava balançando essa sacola e fazendo sacolejar aquelas bolinhas fecais ridiculamente cômicas para mim - que estava em jejum de comida e de entretenimento. Eu juro que ri, imatura e despretensiosamente, uma doce gargalhada. Achei engraçado também como a sua feição se assemelhava ao seu produto. Que Deus me perdoe.