Sem São João, sem Succession, sem você.

Estava tentando acompanhar Succession, cujo último episódio já saiu , enquanto eu vivia minha vida que definitivamente não é a de uma herdeira bilionária. Parei de tentar , a internet caía. Fui terminar um trabalho, ler um pouco. Ouvir Flávio José, pois vai chegando junho e vai chegando - com ele - a minha estranha vontade de sofrer. Este será o sétimo ano em que perco o São João da minha cidade. Não, não tem grandes atrações. Eu nem sei quais são, não me importo. A atração é o local, as lembranças, o fato de estar onde eu sempre quis estar na minha adolescência. Eu planejava vivenciar essas festas, sair com as pessoas, estar naquela fase de paixão aguda. A fogueira está nas portas das pessoas ou em mim? Esse é o ponto da adolescência. Que não tive. Coube a mim, justo a mim, ser “eu” sem ter conhecido as Anitas antes dessa criatura melancólica de hoje. Saí tão cedo de lá que não deixei amigos, talvez umas três amizades que foram se dissolvendo, hoje restam apenas homens ( inclusive muitos comprometidos ) que do nada querem me arrancar de casa. Eu devo ser a pessoa que mais se esforça nos “foras” dados. São bem construídos, eu merecia um 10.

Infelizmente, por mais óbvio que seja, viver do passado não me serve mais de nada. O menino que eu gostava em 2014 ficou por lá, porque eu também não sou mais a mesma, a emoção que eu sentia em um simples evento da minha antiga escola também não retornará. Meu Deus, mas onde estão os remendos? Eu só me rasgo. Daqui a pouco eu não serei mais nada. Um corpo desintegrado, uma linha, uma fibra. Um retalho no chão da minha mente, no máximo. Nunca me esquecerei dos meus vestidos de festa junina, da minha alegria em poder usar batom vermelho e o lápis preto de minha mãe. Eu lembro do cheiro de suas maquiagens e da minha vontade avassaladora de possuí-las. E como ela era linda. Continua linda. Eu lembro que ela, apressada porque também era professora em suas duas escolas, me pintava reclamando de alguma coisa. Mas no final se orgulhava da minha simples figura, dos meus olhos gigantes e infantis, das minhas tranças feitas por ela, do meu rosto corado e junino. Era, afinal, uma mãe. E como doía, aliás, a ponta do lápis preto em minhas bochechas. Ela afundava-os em círculos para fazer as pintinhas. E eu aguardava ansiosamente todo ano pra sentir aquilo.

Meu pai. Não sei onde estava. Não consigo lembrar onde estava. Talvez trabalhando. Talvez farreando. Eu não sei onde ele está agora. Eu só sei que a cada dia eu me perco mais por essa cidade, deixando pedaços de mim como se fosse eu cílios que caem despretensiosamente. Engraçado. Eu sempre pego meu cílio fugidio e procuro mãe, que prontamente entende o que isso significa, então nós o prendemos entre os nossos polegares enquanto um desejo é mentalizado. Soltamos os dedos. Com quem o cílio ficar, o desejo “vence”. Ele é colocado dentro da blusa. Nunca mais brinquei disso. E eu sempre pedi por ela.

Acho que minha maior frustração enquanto pessoa que escreve, pelo nesse período, é nunca saber explicar o São João de uma cidade de interior. Não, da minha cidade de interior. Baseado unicamente na minha lembrança das coisas. Que se confunde com o meu desejo reprimido. E com a leitura que eu sempre fiz das pessoas que observo. Sempre me perguntam, eu odeio. Eu amo. E odeio. Eu gosto porque eu gosto, porque é natural gostar do que é a melhor coisa do mundo. Do que foi a melhor coisa do mundo na melhor fase do mundo, por pior que tenha sido, que é a infância. Eu quase não tive experiências no São João, mas continua sendo minha época preferida. Porque desde aquela época eu já sonhava com as datas futuras e com todas as coisas que eu poderia fazer. O que é engraçado, porque na terceira infância eu era uma criança meio introvertida. Pra não dizer peculiar. Não que isso seja ruim. Eu não tinha vontade de participar das brincadeiras, de ter o direito de cantar horrivelmente (mas que por ser apenas uma criança todos fingiam ter gostado e aplaudiam falsamente), de soltar bombas ou de sair correndo por entre as pessoas. Eu acabei de perceber o que eu fazia: eu observava. Por isso eu escrevo. Que triste, mas que dia triste que só piora. E amanhã ainda é domingo, dia de compras para essa dona de casa que vos escreve. E eu só queria chorar por não conseguir chorar, pois eu adquiri o que mais temia: uma armadura. Não sei se chamo de amadurecimento, acho que não viver plenamente todas as fases. E agora me vejo em um vão entre o tempo e o espaço cuja lei é: apenas siga em frente. Enxergando mal, apenas siga. Vivendo mal, siga. Sem entender nada, mas siga. Pra onde? O único caminho certo é o da morte. E ainda assim a morte é incerta, o seu modo. Porque pelo tanto que eu faço, labuto e estudo, eu não acho que vou morrer amanhã na hora do Domingão com Huck. Credo, que cena terrível. A televisão definha mais do que eu, até agora. E eu ainda inventei de estudar audiovisual. Eu vim pra bem longe, pro lugar onde tinha o meu curso ( descartando Brasília, cujo descarte é autoexplicativo), cheia de referências e sonhos. Eu gosto de escrever, pensei eu. Grande merda. Eu não sou rica, não tenho contatos, meu pai não tem um sobrenome. Não é um Logan Roy em influência, talvez em alguns aspectos da paternidade. Hoje ele morreu. Logan, não o meu pai. Já disse que não sei onde ele está. Eu poderia saber, mas e a vida é simples? Eu sou um unicórnio saltitante? Não. Então pronto. Aliás, eu gostaria muito de ser um unicórnio em algum reino distante. Deve ser bom ser um bicho. Ainda mais um que não existe quando não são pensados. Enfim. É difícil lidar com as coisas. Sempre que eu penso isso, eu lembro que com 19 anos minha mãe estava fazendo faculdade ( assim como eu), morando longe de todos ( assim como eu) e com um bebê ( eu), além do outro bebê um pouco crescido e igualmente careca ( meu pai). Não fez o curso que ela queria, no lugar que queria, talvez não tenha tido a vida que queria. Quem quer um bebê, por mais engraçada que eu fosse quando pequena, aos 19? Era uma casa que nem vou descrever, mas sabe uma música que eu ouvia e cantava dizendo que era como a nossa casa, lá em Jacobina? Complete a canção: “Era uma casa muito engraçada(…)”. Pois é, eu tinha uns dois anos. Achava o máximo essa comparação. Eles riam. Eu acho que riam. Ou riam pra não chorar.

Eu só sei que eu dei muita sorte por ter a minha mãe. E eu seguro a minha barra aqui, que é uma barra que nenhum insuportável de academia seguraria ( sem ofensas), porque eu lembro dela. E penso em dar qualquer tipo de orgulho pra vó e vô, que infelizmente não entenderam até hoje o que estou fazendo. Eu sinto que todo mundo é meio decepcionado, porque eu poderia estar fazendo qualquer outra coisa, eles dizem. E é verdade. Mas eu não quero o curso dos outros, eu quero esse aqui que fica mais difícil a cada dia que passa. Por que eu decidi estudar uma área que sempre será dominada pela grande mídia, esse conglomerado burguês de filhadaputagem tal qual Succession? Eu arriscaria dizer que por sonho, talvez, essa invenção capitalista de merda. Sonhar custa caríssimo. Não tem nada de graça dessa vida, não. No máximo, a gente tira graça da própria vida. Parece que tudo só piora, pra tudo tem um termo em inglês que soa como a retórica falida dos coaches, tudo demanda um perfil no TikTok e eu me esforço pra me manter viva no Instagram. Que desativei. Mas voltarei, voltarei. Não será como da última vez que excluí e passei lindos longos 5 anos sem. Queria ser atriz, meu sonho de criança, porque sendo atriz seria tudo. Teria tudo. Isso se conseguisse emprego, porque ator no Brasil ( ator pobre, nordestino, de teatro) ocupa a linha abaixo da base da pirâmide social. Junto com filósofos e professores de história. Já dizia o meu próprio ex-professor de história. Saudades, Diógenes ( o cínico).

Que vontade de comentar a bandidagem dessas prefeituras com festas superfaturadas. Comentar toda a história de criação do sertanejo e sua relação mais que direta com a política conservadora, de extrema-direita ( ou só direita, o que já explica muita coisa), com o agronegócio. “O agro é pop, é tech”. Agora o agro é rei do forró também. Mataram os artistas regionais , ainda vivos, pra Gusttavo Lima fazer mais um dos seus incontáveis shows e colocar mais alguns milhões empilhados sobre os outros milhões. Ele não levanta uma sanfona como Flávio José, mas levanta fuzil. Que merda. E vai piorar.

Às vezes queria ser rica, imbecil e de inteligência “preguiçosa” ( pra não dizer outra coisa), assim como Roman Roy. Não pensem que os bilionários não sofrem também, ele é ansioso, praticamente virgem porque o que é fodido é o psicológico, carente, usa deboche e piadas como escudo, odeia e ama o pai, vive por sua aprovação porque não teve atenção o suficiente e não consegue chorar. Eu sou praticamente ele, mas sem os bilhões de dólares. Exceto pelo detalhe de que eu ainda sou uma pessoa boa , reconheço, e ele é extremamente escroto. Falando mais que sério agora. Que ator, que personagem. Que roteiro. Que trilha sonora de abertura icônica. Que direção. Que jogo de câmeras como se fosse uma sitcom de comédia, mas que na verdade é um drama. E a comédia é um humor ácido terrivelmente triste. Eu amo uma coisa “ethic fluid” bem feita. E adoro esse termo, nem sei se de fato existe. Eu amo tudo que gostaria de ser. Não quero ser uma professora ruim por não ter sido artista. Eu queria ter talento pra ser artista, porque ser professora talvez já seja uma sina da minha família.