Pegar ônibus molda caráter

Eu nunca senti preguiça de escrever. Nunca. E agora eu estou sentindo uma não disposição incomum. Deve ser porque quem depende de transporte público paga muito caro mesmo. Sim. Paga com a alma. Eu saí relativamente mais cedo da aula hoje, que acaba às 18h30 em dias normais. Depois disso, os estudantes que não possuem carro, moto, bicicleta, dinheiro para Uber , carona ou que vão a pé ( estágio final da entrega da alma ao sistema ), pegam o famoso Circular. Para quem não sabe, e eu mesma não sei se sei corretamente, mas os ônibus circulares estão presentes nas universidades públicas assim como aqueles carrinhos de golfe do Projac ( estúdios Globo). Péssima comparação. Na Globo, artistas ( ou subcelebridades ) são carregados de estúdio em estúdio. Em uma universidade, estudantes são carregados no cata-pobre, quer dizer, no ônibus. Que é gratuito, claro, o que não significa que conseguimos sentar. É raro. Depois dele, nós -meros mortais - pegamos outro ônibus ( um normal ) em nossas respectivas paradas. Destinos variados. Eu, pelo menos, moro perto. Burguesa safada? Jamais. Não tenho dinheiro pro “burguesa”, tampouco falta de vergonha pro outro. Enfim. Apesar de morar perto, especialmente hoje eu fui bastante humilhada ( para os meus padrões de pessoa dramática ) para chegar em minha moradia cubicular e poder, por fim, descansar. Mentira. Estudante que mora sozinho descansa, sim. Mas é de uma coisa enquanto faz outra.

Era noite. Não, era tarde. Mas parecia noite, pois aqui em Natal ( Cidade do Sol) o dia é curtíssimo. Não dá 17h e tudo já é breu. Era tarde, então. 17h40. Olhei no relógio. No meu belíssimo relógio. Aliás, eu tenho uma terrível inclinação pra gostar de coisas belas. Geralmente o belo é caro. Mas foi um presente, que é a principal fonte de bens de todo estudante. Se você vir uma criatura dessas andando sem rumo, por favor, dê uma caixa de sabonetes e uns trocados ( jamais dê drogas, é um vício caro). Pague a conta de luz desse pobre infeliz. Dê uma mochila nova. Um protetor solar. Coloque créditos em suas duas carteirinhas de estudante, porque existem coitados que precisam adivinhar qual carteirinha usar no momento em que o ônibus chega sinalizando isso (quando chega), pois pegam ônibus alternativos e da prefeitura. Ah, sou eu. Continuando. Não deem uma “palavra amiga”, não. Eu não sou amiga das palavras, eu sou amante. Pode ser um abraço, eu juro que prefiro um abraço. Por mais tentador que uma transferência seja. Um apartamento. Uma garantia de que fazer arte e promover cultura terá retorno, sim, e que é possível viver disso mesmo sem um “nome”, contatos, dinheiro, seguidores e principalmente sem se submeter ao pior do TikTok ( que é a sua existência). Atenção: esse comentário possui um teor de 95,7% de verdade. O resto é brincadeira. Tá bom, eu já entendi, podem parar de rir do meu sonho. Pode ser o abraço, então. Eu careço de interação humana, por mais que todo o meu corpo seja sentido por não sei quantas pessoas todos os dias. Sim. Inúmeras. Eu nem sei seus nomes. Os jovens são mesmos depravados, não? E as prefeituras também. Todos os dias, nos ônibus, a gente sente o coração do outro bater. E eu não quis ser romântica.

Longe de mim querer incitar a rinha de quem sofre mais, eu apenas escrevo. Não sou uma criatura miserável, digamos que apenas uma camponesa em terras distantes do seu pequeno reino - mas de onde era uma princesa. É porque tudo que não envolve ônibus, na minha humilde visão fragilizada pela realidade, é coisa de princesa. Não que eu seja ou já tenha sido. Acho que lá, no meu reino tão-tão distante, eu também era uma camponesa. Só era menos sofrida. Aqui eu oscilo entre plebeia e boba da corte.

17h40. Estava eu na parada. Eu tinha um objetivo, que era obviamente voltar para o meu humilde castelinho onde o vento nem chega. Para isso acontecer, diariamente, eu preciso que o transporte público sucateado seja menos sucateado. Olhei para o relógio novamente, 20h20, o meu ônibus, que inclusive só tenho aquela linha de opção, havia finalmente chegado. Chegou depois de chuva, frio, fome, raiva, tristeza, óculos ridiculamente manchados e quase lágrimas de desespero. Ele chegou entregando muito mais do que alívio pós-ódio. Entregou caos. As pessoas sempre se bateram por ele, ontem elas quase se mataram.

Chegando em casa, eu jantei assistindo uma série sobre uma família de bilionários com um dilema que eu jamais terei: a sucessão. Não estou lamentando. A série é icônica. Talvez, se a inteligência artificial não aniquilar os roteiristas até lá, eu possa roteirizar algo icônico também. Ou até mesmo interpretar, já que o talento e a experiência são relativos, o importante mesmo é ter um considerável número de seguidores. O que eu também não tenho.