De quando você se foi, Vô

Vô,

Há muito o seu sorriso tem significado o mundo. Quando lhe roubaram a fala, a força e as palavras, era o que lhe restara: aquele tão bonito, que fazia brilhar o azul dos seus olhos e acalmava-lhe o semblante, tão cansado. Por vezes, era tudo que tínhamos. Já não mais ouvia sua voz, mas sentia-o em minha frente. Naquele segundo, você estava ali, o meu professor preferido.

Observava cada detalhe do seu rosto, na tentativa de tê-lo para sempre, ainda que soubesse que você precisava ir. Sei que os tempos foram difíceis, mas o senhor nunca esteve só: estivemos juntos, durante toda a batalha. Segurei a sua mão quando o médico, certo de sua ciência, nos contou como tudo se seguiria.

Faltava pouco para que lhe roubassem de mim.

Engoli o choro, para que você não me visse chorar. Esboçava um sorriso e alegrava a minha voz em todos os nossos encontros, como quando era criança e corria para abraçá-lo no domingo de manhã. Quando chegava no carro, deixava que as lágrimas escapassem, pois temia o dia que o levariam os últimos risos.

Mas a verdade é que ninguém, nem mesmo essa doença, seria capaz de nos afastar, meu avô. Não fossem os cafés da tarde, os finais de semana em sua casa, as tantas histórias e os exercícios de matemática, não seria eu.

Lembrarei de tudo: das suas desavenças com os padres na escola (ah! A academia de Juíz de Fora!), do seu avô, Chico, tão querido, da cidade de Mercês, das histórias de Getúlio, das estradas que o levaram à nossa mesa de centro e o fizeram o meu professor preferido. Lembrarei dos seus lenços, dos seus cadernos e das suas calculadoras, dos livros de direito e dos porta cartões. Do seu quarto, dos seus retratos, dos seus abraços. Da sua música preferida: Noturno 9, opus 2.

Você, meu avô, estará sempre aqui: em cada passo, em cada detalhe, em cada conquista.

Mas sem que eu pudesse evitar, os dias passaram e você se foi. Hoje, em meio a processos jurídicos e burocráticos, finalizamos o seu inventário. Esse, meu avô, talvez tenha sido o meu maior desafio: foram 58 e-mails, 1 formal de partilha e incontáveis documentos que constantemente me relembravam da sua partida.

Lembrei de você todos os dias e perdi o sono na vã tentativa de revisitar os seus olhos azuis. Senti-me só, e os domingos de manhã tornaram-se apenas dias da semana, como outros quaisquer. De repente, já não era a adolescente que o aguardava ansiosa com a lista de atividades da escola, e a vida adulta me atropelava, anunciando um futuro que, agora, se projetava.

Parte de mim foi com você, vô.

Súbito, a sua netinha já não mais existia: de calça flare e salto alto, ela se despediu de um pouco de si. Ao seu lado, estão algumas das minhas mais lindas memórias, e o mundo já não fazia tanto sentido, sem o meu engenheiro querido.

Mas não se preocupe, vovô, continuarei te contando tudo, agora fitando o céu, buscando encontrá-lo no azul da imensidão. Seus olhos guiarão a minha caminhada e, em meu coração, estaremos sempre na casa que lhe fora tão querida: seremos a neta, o avô, o café passado, a mesa de centro e os exercícios de matemática.

Sei que essa não é uma despedida. Nos nossos últimos encontros, quando a doença, já avançada, teimava em levá-lo, você sorria para mim. Naqueles segundos, sentia-me a menina mais feliz do mundo, certa de que o amor, a mais forte das forças, transcendia as doenças da mente.

E esse amor, que fez com que você nunca me esquecesse, seguirá vibrando entre nós, atravessando planos e distâncias, e nos conectando pela eternidade. Descanse, vovô, na certeza de que o amor também transcende o tempo e a despedida, e que aqui, nessa vida, estará sempre a sua netinha querida. À espera do reencontro.

Fernanda Marinho Antunes
Enviado por Fernanda Marinho Antunes em 28/03/2023
Reeditado em 28/03/2023
Código do texto: T7751139
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