Canindé

Gosto muito desse nome. Será nome de pássaro? Não sei. Não vou pesquisar. Pesquisei. Bicho bonito. Combina com o

nome. Eu gosto de tudo que faz jus ao nome. “Pietá” é um nome lindo. Nome de uma banda massa que eu ouvia com 13, 14 anos. A idade da descoberta. Pietà é uma obra linda. De Michelangelo, um gênio. Jesus morto nos braços de sua mãe. Tudo que tem mãe é sagrado.

Quando eu era criança, lembro que não dormia com o barulho de festa que tinha em um clube aqui perto. Não era sempre. E eu acabava dormindo. A questão não é essa. É que eu me lembro de Canindé como o único cantor que vinha aqui. Eu sei que não, mas minha memória afetiva não abriga tanta coisa assim. E eu nem sou fã. Mas também não desgosto. O anúncio era sempre o mesmo, com a mesma música. Da tal da meiga senhorita. Do lugar que, se for pequeno, ele aumenta depois. Ele tá é certo. Provavelmente a letra nem é dele, mas vamos supor que seja. Quem escreveu está certo, a gente não pode deixar de viver pensando no “e se”. Se for pequeno, aumenta. Simples. Mas não. Eu não acho nada simples. Tudo é de uma complexidade, de uma singularidade. Eu analiso friamente as coisas, as palavras, o mundo, as pessoas, as situações, eu mesma. Eu perdi as contas da quantidade de oportunidades que neguei, de pessoas que deixei, de convites que não soube responder. Então deixei também. Nem todos valiam a pena, mas tem quem diga que tudo é história pra contar. Eu mesma falo isso. Engraçado. Como o ser humano é contraditório. Ainda bem que não tenho certeza de qual planeta vim.

Hoje, exatamente agora, Canindé inicia mais um show com o mesmo repertório no mesmo lugar de sempre. Mentira. Com certeza não será pontual. Mas isso aqui não é uma crítica, ele é um intérprete de músicas já conhecidas, quem não quiser ouvir que não vá ouvi-lo. Isso é simples. E eu até que gosto. Não é um Zé Ramalho, um Fagner. Mas Zé Ramalho é melhor que Fagner. E Zeca Baleiro também é melhor que Fagner. Fui num show de ambos, juntos. Coisa linda. Mas de Canindé, que veio aqui durante minha vida toda, eu jamais fui. Tudo bem, eu era uma criança. Mas agora algo me diz que não sou mais.

Vamos abrir um parênteses. Eu vou abrir: a adolescência vai até os 19 anos, eu vi num cartaz sobre vacinação no posto de saúde daqui de minha cidade. Sim, estou bem. E apenas com essa informação me convenci de que ainda não sou adulta, não é possível que seja assim. Apesar de morar sozinha, de fazer faculdade, de ter raiva de adolescentes em grupo (não sou reconhecida pela espécie), de sentar na porta tomando café no sol de um milhão de graus, de pegar ônibus e reclamar com os outros passageiros e, quem sabe, por querer ir nessa festa de Canindé. Mas eu nasci em 2003, eu acho que isso foi ontem. Eu não tenho 15 anos? Quem disse isso? A identidade é só um papel. Eu posso subverter a realidade. Eu posso rasgar minha identidade… (mas não farei isso porque depois precisarei ir até a cidade mais próxima para pegar uma fila, fazer uma nova identidade e esperar uma ou duas semanas para ir lá novamente , pegar outra fila , assinar um documento e - finalmente - segurar em mãos meu novo documento). Falo assim como se não fosse muito jovem. Deve ser porque eu não exerço a minha idade. Eu não tive a fase corrompida. A famigerada adolescência. Eu não bebo, ninguém me oferece uma droga, não namoro. Nessa última parte me oferecem muitas coisas, mas por alguma razão desconhecida eu simplesmente não vou. Eu não bebo por opção, mas eu queria alguém me oferecendo para que eu pudesse educadamente negar. Eu não vou usar drogas, as proibidas, porque eu penso muito. Essas coisas não são da razão. Mas eu quero perder a razão às vezes. É bom ser da emoção. E eu sou. Uma parte de mim pondera, mas a outra delira. Essa parte que eu reprimo. Eu não tenho vontade de nada pra sempre, mas eu queria experimentar viver. Tudo. E por que eu não faço isso? Não sei. Acho que minha base me aterrou muito. Quis dizer que minha família não facilita a situação. Eu queria coisas simples, como fazer tatuagens e colocar piercings (aliás, já tive uma parte do cabelo raspada e devo assumir que todos sobreviveram), e coisas difíceis como a que já estou fazendo: ter escolhido tentar ( foquemos no “tentar”) me formar como artista. Mas é tentar mesmo. Eu corro dessa palavra. Vejo tantos colegas batendo no peito e vociferando que são artistas. Que são escritores, roteiristas, realizadores, os maiores do mundo. Eu não acho que ser artista é dizer “eu sou artista”. Se eu disser que sou um lindo unicórnio rosa e saltitante, todos saberão (inclusive eu mesma) que eu não sou um unicórnio rosa e saltitante. Algo me diz que é porque quem eu mais admiro são aqueles tão geniais que parecem que nem sentem a potência que irradiam. Humildade cai bem também. Mas em proporções corretas. Caetano é humilde. Mas ao atacarem a cultura, a música brasileira ( em uma das milhares de vezes), ele disse “eu sou foda”. E ele é. Opiniões não mudam fatos. Caetano acontece, transcende.

Ele disse o mesmo de Gil, de João Gilberto. Desses baianos, graças a Deus. E são mesmo. Reconhecer é sinal de inteligência também. Ser pedante é ignorância.

Eu não abro minha boca pra me chamar de artista, eu sou uma mera receptora. Apreciadora. Eu escrevo, mas não sou escritora. Não tenho nada que me faça artista. E isso não me assusta. Se um dia a arte me descobrir, que saibamos disso. Mas não é uma necessidade. E, mesmo quando eu obtiver a experiência que alguns colegas meus possuem, não terei a coragem de responder “ sou artista” para as constantes perguntas sobre o que faço. Também não posso dizer “faço arte”. Porque ela se faz além da gente. Eu sei que a minha formação, eu querendo ou não, é no campo artístico. Mas ninguém entra na universidade pra ser isso, um curso superior não faz um gênio, você não tem aulas de como ser autêntico, revolucionário. Artista não precisa ser formado, porque a arte que é formadora. Gênios são incompreendidos, inclassificáveis e acho que não sabem exatamente que são geniais. Você é ou não é. Você se destaca ou é mais uma reprodução do mesmo. Uma cópia da cópia.

A arte é tão minha pele, mas tão impermeável. Eu não sei de nada, mas sinto tanto que - se brincar - eu sinto tudo. Nada disso me faz superior, mas ser consciente é preciso. Não é o bastante, porque a vida não basta, por isso a arte existe. E eu faço questão de lembrá-la.