Uma canção para você

Já faz muito tempo. Sempre que ouço a canção, recordo os momentos com a impressão que ainda remanesce e fica aquela vivência de tempos remotos, como uma inspiração para o cotidiano. Viagem sonora repleta de subjetividades, porque nem só de bread vive o homem. Traduzido, bread significa pão, em inglês. Nome de um grupo musical americano dos anos setenta, liderado pelo cantor e compositor David Gates. Uma canção dele ficou na memória. Chama-se “If” a composição cujo lirismo me comoveu aos vinte anos, sinfonia servindo como cortina de uma afeição que já dura mais de quarenta anos. “Se um homem pudesse estar em dois lugares ao mesmo tempo / Eu estaria com você / Hoje e amanhã, completamente ao seu lado / E se o mundo fosse parar de girar, rodando lentamente até morrer / Eu ficaria no final com você / E quando o mundo acabar / Aí uma por uma, as estrelas se apagariam / E simplesmente voaríamos para longe”.

Quantos anos se passaram e a canção continua aqui, na minha playlist de clássicos imperecíveis. Essa música ativa uma função no meu cérebro que foi exclusivamente montada para bem querer você pela vida afora. Imagens de ressonância magnética indicam que, no mapeamento da minha atividade cerebral, essa melodia é icônica de nossas vidas. Pelo menos em mim desencadeia ondas de afetuosidade e nunca falham em me tirar de algum desgosto, humor sombrio ou falta de perspectivas. A letra simples me dá uma sensação de eternidade. A canção é tão estimulante de minha sensibilidade que acabo vertendo alguns pingos de secreções formadas por água, sais minerais, proteínas e gorduras, produzidas pela glândula lacrimal para limpar, purificar e lubrificar. No caso, essas secreções servem para descarregar o abalo da minha música favorita no meu sistema nervoso central. Estudos indicam que ouvir a canção predileta pode ajudar a tratar a perda de memória. Neste caso, algo tão etéreo e prodigioso como a afinidade entre duas criaturas pode até ser esquecido um dia, ou se quebrar a magia do fascínio, mas a canção sempre manterá a emoção primária.

Envolvendo sentimentos intensos, a melodia abre um circuito neuronal nos meus dois hemisférios cerebrais, e acabo chorando invariavelmente. Sou um elemento sentimental irremediável, embora custe confessar. A pandemia aguçou isso. Quase setecentas mil mortes, sequelas conhecidas e outras ainda ignoradas, o trauma coletivo abalou nossas disposições de ânimo. Dizem que há uma onda de suicídio por aí, uma espécie de pandemia silenciosa. Há um bocado de desamor espalhado no ar pestilento de uma humanidade desgostosa. Impressiona o grau de escuridão disfarçado em ideologia mortífera. Ausência, rejeição e morte. Egoísmo, discriminação e morte. Essa doença estraçalhou o bem-estar mental das pessoas, e nem sombra de que se estabeleça um mundo superior depois da crise sanitária mundial. Aquela concepção de que sairíamos dessa pandemia como seres humanos melhores, esqueça. Tudo será como sempre foi. Resta inventariar esses pesadelos, amoldar a um novo normal que sempre será estranho, e tentar viver sem buscar a fuga, sem a autodestruição, por favor! Prefiro me fazer levar pela intrincada sofisticação do afeiçoamento, a experiência de despertar antigas e delicadas reminiscências através de uma canção. Minha professora de música garantia que a música cura e restabelece nosso equilíbrio. “A música penetra diretamente em nossos centros nervosos e coordena mentalmente, de maneira rápida e imediata, a divisão do tempo e do espaço, além de inspirar o gosto pelas virtudes”.

No meu devaneio mais brega, estou no parque de diversões São Jorge olhando a roda gigante quando escuto a voz do locutor fanho: “Atenção muita atenção as iniciais J.C.L. Assim como as aves abrem as asas para voar, abra também seu coração para ouvir essa linda música que um alguém lhe oferece como prova de muito amor e carinho”. Citando a atriz e historiadora Adriana Brito: “Não tenho a pretensão de que todas as pessoas que gosto, gostem de mim, nem que eu faça a falta que elas me fazem. O importante para mim é saber que eu, em algum momento, fui insubstituível, e que esse momento será inesquecível”. Torno a dizer, a música salva. Na nossa débil e ridícula vidinha, tem a hora do desalento e da ansiedade. Vem a canção, se apodera de mim, e eu ouço a composição de David Gates: “E quando o meu amor pela vida está se apagando / Você vem e se deita sobre mim”.

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 29/05/2022
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