Zé Ninguém

Não lembro se alguma vez o vi sóbrio – acho mesmo que nem os seus parentes possuem essa lembrança. Toda vez que eu subia o morro encontrava-o embriagado. Aliás, também não lembro o seu nome: trocávamos sempre poucas palavras, pois era muito difícil entender o que falava. Algumas pessoas diziam que costumava ficar agressivo quando bebia, mas nunca me dirigiu sequer um gesto deselegante. Dele, não tenho qualquer reclamação.

Morava numa das partes mais altas de Santa Teresa. Para chegar à sua residência, era preciso subir por um esburacado caminho, muito íngreme e extenso, encavado na encosta do morro. Quem precisasse seguir por essa desnivelada trilha teria do seu lado esquerdo, margeando todo o percurso, um longo muro de concreto, limite das casas próximas, e do lado oposto, um extenso barranco e o matagal característico de áreas nunca trabalhadas pelo homem.

Talvez o maior sonho do Zé – resolvi dar-lhe um pseudônimo – fosse a existência de uma birosca ao lado de casa, uma vez que a mais próxima ficava no sopé da ladeira. Para tomar suas pingas, precisava descer o morro, o que, para ele, tendo em vista a dificuldade em manter o equilíbrio, nem sempre era uma tarefa simples.

No entanto, pior que descer para tomar uma pinga era subir após a pinga ter sido tomada. Por experiência sabia que precisava caminhar pelo lado esquerdo, se apoiando no muro, contudo, muitas vezes seus passos trôpegos o levavam para o lado direito, lançando-o barranco abaixo, no meio do matagal.

Muitas vezes, de tão alcoolizado, não tinha forças sequer para completar a subida e ficava como que enguiçado em qualquer ponto do trajeto. Com exceção de seus familiares, que se preocupavam em levá-lo para casa, os demais moradores do lugar já o consideravam, juntamente com os buracos, o mato e as pedras, só mais um obstáculo a ser contornado. Nenhuma pessoa prestava mais atenção em seu corpo estirado no caminho.

Que se saiba, o único relacionamento íntimo que mantinha era do tipo comercial com o dono da birosca que frequentava. Convivência amorosa, nem pensar: devido ao seu rotineiro estado de embriaguez, os únicos interesses que despertava nas mulheres que o conheciam eram aversão, na maioria, e pena, em algumas. Provavelmente sua própria alma gêmea havia desistido de encontrá-lo e talvez fosse essa uma das causas das suas constantes bebedeiras. De resto, o Zé era praticamente ignorado no local.

Mas agora fiquei sabendo que a situação mudou. Da noite para o dia, todos passaram a procurar por ele.

Numa manhã deixou o morro para comprar cigarro e nunca mais voltou. Isso há mais de quatro meses. Já foi procurado em delegacias, hospitais, necrotérios e até por entre o matagal, mas não foi localizado. O Zé sumiu.

Agora o Zé está sendo mencionado em todas as conversas da comunidade. É a personalidade mais citada no morro. Dizem até que saiu uma notinha sobre ele num jornal.

Atualmente ele faz parte de uma das mais importantes listas do Rio de Janeiro: é membro do rol dos desaparecidos na cidade: O Zé ficou famoso, virou estatística, deixou de ser ninguém.

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Sykranno
Enviado por Sykranno em 12/05/2022
Código do texto: T7514497
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