O que é que a barata tem?

“Além das baratas de Kafka e Clarice Lispector, entrou hoje para o hall da fama dos insetos literários Sandra Cristina: a minha barata. Que está morta. Junto com ela, a minha adolescência.”

Nossa, que ridículo. Ainda bem que quem escreveu isso não fui eu, já que a gente não é mais o mesmo a cada segundo que passa. É a minha desculpa filosófica preferida. Além disso, quem disse que minha adolescência morreu? ( Eu disse). Ela mal existiu. Eu sou algo entre uma criança e um adulto, mas que não é adolescente e nem idoso. Quem sou eu? Calcule. Questão da OBMEP 2023, quem aposta comigo?

Eu tenho certeza. Mas eu só tenho certeza das coisas aqui, quando escrevo, do ponto final em diante eu já não sou ninguém e não acredito mais em nada. É engraçado como os momentos epifânicos da vida da gente acontecem em situações toscas, como quando estamos nos equilibrando constantemente dentro de um ônibus ou quando estamos estudando e uma barata cai em nosso braço. Aquele inseto sim possuía histórico de atleta. Nunca vi voos tão bem elaborados e tamanha habilidade física para escapar magistralmente dos arremessos, que foram igualmente bem feitos. Pensei: por que eu, iniciando os meus estudos no pré-feriadão ( coisa que demonstra a minha força de vontade ), mereci ser coagida tão violentamente pela vida? Isso mesmo. Eu fui levada pelas circunstâncias, não podem me julgar, quem em meu lugar não daria um sumiço em uma barata? Já vi coisas piores. Tem gente que mata joaninha ( eu suponho). Que tipo de ser humano mata um bichinho vermelho com bolinhas? É fofo. Poderia ser altamente venenoso como meu quase xará - o cogumelo Amanita - aquele vermelho com bolas brancas, mas é bonito de se ver. E uma barata merece o que uma barata merece: o extermínio. Que não saibam que eu fui monitora de Biologia no ensino médio, é o nosso segredo. Você já é meu cúmplice. Nunca pensei que tão cedo eu fosse dizer algo como “na época do ensino médio”. Que época? Isso foi ontem. Ainda nem superei os traumas. Tenho foto de caderno até hoje.

Antes de entrar em luta corporal contra um inseto um milhão de vezes menor do que eu, lembrando que essa estimativa eu acabei de inventar, eu finalmente me deixei ver um filme. A minha abstinência de cinema se deu por duas razões: a primeira é muito complexa pra uma crônica e a segunda é que eu não sei utilizar o maior (e principal) recurso da internet, a pirataria. Quem quiser me ensinar a entrar pra essa vida, me sinto preparada, na minha ficha já tem um inseticídio. Se bem que foi por legítima defesa. E que defesa eu tenho. Perdi moralmente a batalha, jogando fora o restante da minha dignidade por meio de métodos terrivelmente amadores, mas - depois de 2 horas - as constantes vassouradas gritaram mais alto. Ou eu gritei mais alto. O corpo já foi retirado do local e, segundo a autópsia, a causa da morte pode ter sido por ensurdecimento. É recorrente entre as baratas. Fica aí essa pauta, um possível tema pra redação do ENEM 2023. Fiquem de olho. Aqui você lê, se entretém com a minha autodepreciação e ainda sai ganhando dicas. De nada.

A moral da história é que nem toda história tem moral. Mas temos a liberdade da suposição, então vamos supor que a barata seja um mal necessário. Um ser que paira entre o divino e o grotesco. Mas a minha barata não foi metafórica, eu não tô falando da vida, eu realmente passei duas horas da minha existência disputando território. Cenas fortes. “Ou será que eu fiz parte de um rito de passagem em que a barata foi a representação simbólica da minha adolescência, brutalmente assassinada por mim mesma, me fazendo encarar o começo da vida adulta?” ( Leia-se com música de suspense ). Para ler este e outros devaneios, acesse o site. Agora sim eu terminei. Juro. Eu poderia continuar, se querem saber. Mas não irei.