Pra lembrarmos que eu escrevo

Uma corrente que eu usava deslizou sobre meu pescoço, quebrada. Assim, de repente. Minha pobrezinha, minha única e amada. Um presente, uma lembrança, um objeto pra eu lembrar que gosto de enfeites. Agora já era. Acho engraçado que, independentemente da idade, minha mãe não acredita quando eu falo “ mas eu não quebrei, ela simplesmente apareceu assim”. E eu juro que nem toquei nela, ela quebrou sobrenaturalmente. Às vezes coisas assim acontecem, comigo sempre.

Agora eu tô fazendo uma coisa que jamais pensei que faria: sentada de frente para o ventilador, no chão, esperando meu cabelo secar. Ledo erro. O cabelo seca, mas de uma forma que indiscutivelmente não vale a pena. Se eu tivesse Sol, eu estaria sob ele. A cidade tem, a praia tem, mas eu não tenho. Ele não reflete em meus olhos todos os dias, são raros os dias. E eu passei protetor solar pra ficar em casa, inclusive, no vento artificial de um ventilador que eu ganhei. Ainda bem que eu ganhei, aliás. Talvez eu saia hoje pra fazer jus ao protetor solar usado. E foi do fator mais alto do mercado, eu preciso encontrar o Sol. Ou o contrário. Me sinto com mais cor de tanto andar a pé, mas não com mais vida como gostaria.

Lembrei agora de quando ouvi o som do piano em meio à paisagem sonora urbana, que é egoísta, segui as notas e encontrei meus passos. E encontrei-o. E sentei próxima, ouvindo, adivinhando as músicas. Quando me arrastaram pra irmos embora, ele tinha começado a tocar “Pela Luz dos Olhos Teus”, de Jobim. Eu era a única pessoa prestando atenção, ele percebeu. Olhando pra ele, mas não o homem, ele - o momento - fiquei me perguntando o que fizeram com a luz dos olhos meus.

Fui à praia, não encontrei a luz por lá. Eu fui do jeito mais errado possível, eu andei com pressa, eu pisava no chão e via tudo rodando ( sem álcool) , foi a sensação mais estranha que tive ( da semana). Eu tive a pouca vergonha de me estressar, mesmo com um mar de gente ali e um mar de mar. Eu me sinto tão ridícula por ter quase gritado com uma sem noção (leia como se fosse em caixa alta, com bastante entonação) que estava com um cachorro perigosíssimo ( segundo a minha própria classificação) correndo solto em minha direção. Na verdade, eu falei umas coisinhas. Mas o mar, né? O mar fala mais alto. Ela não ouviu. Curioso que, quando eu fico com raiva, eu crio uma coragem sinistra ( e um pouco ingênua) de ir pra cima de quem aparecer ( com palavras, claro, acho que eu não aguento um empurrão). Mas a coragem dura pouco tempo, depois eu vi um cachorro 4 vezes mais perigoso e apelei pro nome mais doce do mundo: o famoso “ mãe”, pronunciado com bastante aflição - urgindo por socorro imediato. O senhor amigo nosso, que não gosta de ser chamado assim, mas você olha pra ele e pensa: um senhor que já foi surfista. Errado. Um senhor que ainda é surfista. Não sei se é um senhor surfista, mas é sem dúvidas um surfista senhor. E eu abusei da palavra, perdão. Eu percebi que não disse nada. Voltando. O senhor amigo nosso sempre vem com um papinho sarcástico de “ ah, as atletas estão preparadas?”. Isso em absolutamente qualquer contexto. Aí eu me peguei pensando: por que todo mundo acha que pode olhar para essa minha cara e deduzir que eu sou incapaz de praticar alguma coisa? Eu gosto de esportes? Não. Tudo que tem bola é ruim. E água. E escaladas. E bicho. E altura. Daí ele lançou outra: “olha aí, Anita, faz tua galera e vai jogar altinha na praia, pegar uma onda”. Risos. Eu também tenho medo de bola, lembrei. Inclusive, eu fiz um belíssimo paralelo entre cachorro e bola. Esqueci a metade, mas pensem comigo: os dois podem causar um estrago na minha cara, os dois podem me assustar, os dois são um tanto imprevisíveis. E por aí vai. A diferença crucial tá na presença ou não de uma arcada dentária afiada. Por precaução, eu desvio de ambos. Sim, eu fui infeliz hoje. Eu desviei das coisas, das pessoas, dos olhares, da própria água. E que sensação desesperadora daquele protetor solar colado na minha pele. Eu poderia ter entrado na água. Não, eu não poderia. Minha roupa só não estava pior do que a de um homem que foi de terno. Sim, de terno.

Sentada num calçadão estranho, tortuoso, eu nem olhava pra baixo por razões de equilíbrio mesmo. E de visão. Se eu olhasse pra frente, via o mar. Lindo, ele sabe que é lindo. Mas eu não tava pra ele hoje. Olhei pra cima. O céu. Lindo. Mas também não consegui. Olhei pra frente, um pouco mais embaixo. Cantores. Olha só, eu pensei, música. Que legal. Depois da famosa sequência de palavras “ oi, som, testando, oi”, que inclusive é de uso nacional, o vocalista começou com “Pescador de Ilusões”. Tinha que ser. Tava tão alto que a voz ligeiramente esganiçada do cara entrou sem dó no meu tímpano direito, potencializando uma dorzinha de cabeça típica ( não levei os óculos ), fato que fez com que eu desse minha primeira risada sincera do dia. E olha que tinha um cara de blusa cinza, felizaço, que tava ali sozinho ao lado da banda cantando com tanta paixão que eu ouvi ele batendo no peito e gritando “ sou pescador” umas 3 vezes. Ele cantou mais alto que o vocalista, que estava obviamente com um microfone. Depois tocaram Charlie Brown Jr. , na verdade, tocaram “Só os loucos sabem” 2 vezes por 20 minutos. Sério. A voz do coitado era boa, eu que fui cruel. Mas também ninguém nunca disse que queria morar na minha rua. Eu não sou fã da banda, a questão é que música - não sendo extremamente ruim - é sempre boa. E sempre me coloca em um lugar de paz. Ou de agonia misturada com um anestésico de nostalgia. É, só os loucos sabem. E eu fiquei tão triste por tudo, por não ser a pessoa que eu gostaria de ser. E que sou, mas só em mente. Eu poderia ser a pessoa que joga altinha na praia. Mas claramente não serei. Mas eu poderia no mínimo ser a pessoa que nem anda, flutua, desfilando com um biquíni microscópico. “Ah, mas tem que ser microscópico?”. Claro que tem. Eu pulo nos extremos. Só que isso não vai acontecer. No dia em que eu fizer uma tatuagem escrota, tipo uma pimenta na virilha ou uma onça com flores na coxa ( ou uma frase falando do mar na costela), aí eu uso um biquíni assim retribuindo as cantadas com o dobro de malandragem. Eu pensei em dizer “ ou uma cobra que percorre meu pescoço, passando pela cintura e chegando até o pé”, mas aí eu pensei que não seria tão escrota assim. Tá, seria. Mas é um escroto-legal. Que triste como eu sempre imponho condições insustentáveis para coisas tão simples. Eu queria fazer umas tatuagens por aí pra depois perguntarem “nossa, qual o significado?”. Eu tinha dinheiro, fui lá e fiz. Esse é o significado de 99% das tatuagens. Eu também poderia ser a pessoa que faz topless na praia e vai presa. Não, espera. Eu poderia ser a pessoa que faz topless na praia sem ter que passar por esse falso moralismo sobre “atentado ao pudor”. No dia em que eu montar num Rottweiler, eu faço topless e ainda tiro fotos pra fazer ímãs de geladeira.

Por falar em fotos, eu poderia tirar fotos de todos os hematomas que acumulo da minha atividade física. Sim, eu tenho uma. Ela existe. Mas o senhor do surfe não sabe disso. Eu digo que é um senhor levando em conta a tatuagem de um cavalo-marinho tão velho e enrugado que a tinta, antes preta, tá entre o verde envelhecido e o azul sem vida. No dia em que eu tatuar um cavalo-marinho na minha testa, eu pego uma onda com ele. Podem me cobrar tudo isso.

Tudo me assusta. Eu tenho medo de ter tanto medo. Claro que eu gostaria de não ser imbecil e aproveitar a vida quando a vida vem, o corpo, as minhas vontades. Eu acho que vi alguns ( sim, alguns) centenários na orla, com suas roupinhas devidamente adequadas ao ambiente, enquanto eu que estava careta. Eu e o homem de terno, lembremos dele. Agora a última condição insustentável: no dia em que eu tiver um bom salário, vou gastá-lo em biquínis pra cada dia da semana, como uma grande burguesa safada em formação que sou. É brincadeira. No fundo, ninguém gosta de burguês.