Estatística e lágrima

Não tem sido fácil meu encontro com minha identidade. Quando penso que já ouvi coisas demais, outras tantas que me deixam boquiaberta. São relatos doídos de pessoas que se sentindo a vontade - falam de uma dor que sequer sabemos existir! Será que queremos tomar conhecimento dessa dor? Quando me percebi negra, reagi como pensei ser o correto. Assumi meu cabelo crespo, e como para mim não foi muito complicado, me questionei por que as outras pessoas não fariam a mesma coisa?

Não é tão fácil assim! Os negros precisaram desenvolver várias artimanhas para tentarem ser aceitos na sociedade branca e racista, onde o diferente é escanteado, ou mesmo apagado. Não entendia por que minhas tias alisavam o cabelo. Se não agissem assim, não teriam conseguido colocações, relações que antes só brancos ocupavam e conseguiam.

Ouvi um relato de um jovem que sonhava com uma carreira militar, mas tinha dois "poréns" era negro e morava em um bairro de fama ruim. Não conseguiu realizar seu sonho. E ele mesmo viu sua mãe ser olhada de "alto a baixo" por uma atendente bancária. Ainda foi menosprezado ao tentar fazer um depósito por não ter aparência de um correntista "prime". Uma vereadora conta que desde quando se entendeu por gente, sofre racismo. Era literalmente jogada no lixo na escola...

Não são poucos os relatos de pessoas seguidas por funcionários como suspeitos ao entrar em alguma loja. Isso aprendemos desde pequenos, não usar certas peças de roupas: jaquetas, bonés, mochilas. Mesmo na rua, sempre portar documentos, se tiver além da identidade, a carteira de trabalho assinada...Isso tá complicado. Nem emprego formal tem.

Do nada, podemos sofrer batidas policiais. O que está errado? A cor, o lugar, a hora. mas você chegou lá! O script não diz que ali é o seu lugar. Tua cor não se mistura na cor dominante, você não faz parte, você não é parte. Aí um vento desfaz seu cabelo, a luz revela sua diferença, logo lembram que não devia estar lá. Aí se entrou pela porta da frente, pode ser convencido a não voltar mais lá.

Pode ser um M8* ou o porteiro, zelador também pode! Existem pessoas que não estão lá, por que não estudam - são estudadas. Não cuidam do futuro, por que não têm. Por que são invisíveis, por que já nascem sombras. Vivem nas sombras, quando aparecem são varridas para debaixo do tapete e viram objeto de estudo, uma letra, tornam-se estatística e lágrima de alguém.

*"M8: quando a morte socorre a vida" <https://www.youtube.com/watch?v=TW_ZfyTGNRs&t=1s>