Mulher do fim do mundo

A minha capacidade intelectual se deteriora mais a cada dia. E muito é por culpa minha. Por isso nem posso falar de Elza Soares, mulher do presente. Quando alguém é dito revolucionário, “avant-garde”, é sempre alcunhado de “à frente de seu tempo”. Definição incorreta. Ela era parte do que há de melhor na cultura do Brasil: resistência. Do passado até o presente traçando histórias, o que com sorte ficará de herança para as futuras gerações. E tem que ser sorte mesmo, porque é quase crime fazer cultura por aqui. Bom mesmo é ser contemporâneo, odeio quem diz que nasceu na época errada. Eu nasci podendo aproveitar muito de muitas fases do mundo, tem coisa melhor? Tem, viver. Mas estamos impedidos temporariamente. Espero. O mundo tá acabando, claro, não sei como alguém ainda se surpreende. O que fica, então, são as histórias. As lembranças, as memórias. A música, a arte, os filmes, a poesia. Será que Leminski ou Ana Cristina César pensavam, lá nos anos 70, que sua poesia marginal alimentaria uma jovem desde 2016? Eu também tenho minhas causas, minha tristeza, minha melancolia e minha vontade de escrever. Sou triste, mas não como Ana C. Ela era depressiva, ela se jogou de uma janela. Ela era grande, mas acho que não dava importância. Ou não sabia. Eu tenho um apreço pelo sombrio também, gosto de Augusto dos Anjos ( ironia no próprio nome, meu sonho) e não vou dizer que não gostei do corvo de Poe. Eu imaginava meu próprio corvo de inspiração poética, mas em Brasília só tem pombo. E como eu odeio os pombos. E Brasília. Além de Leminski e Ana C, será que os queridos Doces Bárbaros e os tropicalistas em geral pensavam - também nos anos 70 - que continuariam tão importantes e essenciais no agora? Pois eu não sei o que seria de mim, sozinha numa capital, sem meus livros e discos. Minto, não tenho discos. Mas vocês entenderam. E hoje eu sou ridícula, mais do que antes. Empilho mais livros ali, distantes, e não tenho forças para lê-los. E escrevo todo santo dia, mas também não tenho a decência de transcrever. Às vezes até transcrevo, mas vejo que é uma grande merda e abandono. Eu acho que abandono bastante. Ideias, livros, palavras, pessoas. Em algum momento, eu me larguei em um canto e esqueci de voltar pra me buscar. Certeza.

Lembro que quando era criança, queria ser artista. Quer dizer, nessa idade eu queria mesmo era ser celebridade. Meu sonho era ser gostosa e global ( global = da Rede Globo). Depois, criança mais velha, eu queria ser de fato artista e global ( global = viajada). Ai, ai, o amadurecimento. Mas aí, infelizmente, tive os meus sonhos reduzidos a pó muito precocemente: aos 12, numa oficina de teatro em Brasília, percebi que além de não ter talento, eu não tinha a capacidade de adquirir a técnica. Isso porque sofri uma humilhação. Aos 12 eu não possuía o conhecimento primordial que eu tenho hoje, o de que a humilhação é a base pra quase toda carreira. O artista que se preze, especificamente um ator, tem que ser humilhado pra depois ter seu momento de glória. Não que eu concorde, mas é um fato. Por isso que o artista é depressivo, ele necessita ser elogiado o tempo todo. Mas é uma longa história. Engraçado que eu fui quase uma criança prodígio (nas minhas palavras), pois fui prontamente transferida para o grupo de adultos no teatro. Isso foi o auge, eu já via uma carreira. Mas aí não deu em nada e eu desisti de ser atriz. A carreira mais curta do Brasil. Até porque eu não gosto de decorar falas, eu nem sei decorar. Só se fosse na base da improvisação, quem sabe se eu tivesse 0,1% da genialidade de Tatá Werneck. Mas enfim. Tinha pensando em originalmente escrever “quando eu era criança, queria ser atriz, hoje eu quero morrer”. Mas esse tipo de humor é um pouco perigoso, ainda mais numa crônica cuja essência é a morte de uma artista, além da simbólica morte da cultura. Que, convenhamos, não é tão simbólica assim. Se bem que a cultura em si não morre, pois o ser humano é a cultura. Na verdade, é quem a produz. Agora a gente só precisa sobreviver. E não eleger um energúmeno.

Apesar de ser um humor perigoso para jogar nesses textos que faço, eu adoro autodepreciação. E isso tá presente em tudo, mas não do jeito que eu gostaria. E quando a autodepreciação vem misturada com nonsense, eu sou quase feliz. Mas não feliz demais porque eu preciso do equilíbrio, a tristeza calibra a vida. Sempre tive vontade de dizer “quem me conhece sabe”, mas ninguém me conhece. E se conhece, tá errado. Mas vou dizer mesmo assim. Quem me conhece sabe que eu sou (ou era) uma grande entusiasta da alegria e do bom humor. Hoje eu fico com a educação, tá muito difícil ser alegre nesses últimos dois anos. E quem tá feliz, tá errado também. É quase uma falta de educação ser feliz, hoje, no Brasil. É um dever cívico ser triste e revoltado. E eu, como patriota que sou, cumpro meu dever. Tirando a ironia presente, eu adoro o Brasil. Não queria ter nascido em outro lugar, apesar dos canalhas. E são eles próprios que se autodeclaram patriotas, mas desconhecem os brasis que se entreolham. O Brasil da ciência, da arte e da cultura. O Brasil que foi de Elza, que foi e é de tantos outros. Que é meu também.

Anita Maria
Enviado por Anita Maria em 20/01/2022
Reeditado em 20/01/2022
Código do texto: T7433773
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