Levanta e anda

Não posso falar do novo sem falar do velho, porque é o velho que me inspira no novo. Foi justamente no velho ano, dentro de um supermercado, há menos de 7h do fim do ano que esbarrei com um garoto e um saco de bombom. “Foi mal, amigo, eu só tô com cartão”, disse de imediato, eu não o havia entendido, mas aquela era a resposta padrão, e não deixava de ser verdade, eu não tinha dinheiro, somente cartão.

Ele se aproximou, e com sua voz baixa eu ouvi:

- Você pode comprar esse saco pra eu vender na rua?

Ali, do alto de um esquecimento sobre o quão dura a realidade pode ser, eu despenquei. Embora eu tenha passado o último ano inteiro falando sobre o quão insustentável estava sendo viver, naquela virada de ciclo, eu passaria confortavelmente com meus amigos, nosso carrinho continha tudo para uma farta ceia, não somente em questão de comida, como também de bebidas. Foi exatamente naquelas últimas horas do ano, que o que era verdadeiramente insustentável cruzou o meu caminho, e eu aceitei o seu humilde pedido.

Não acredito em sorte, azar, acaso ou encontros que nos colocam frente a frente com alguma realidade para nos ensinar algo. Acredito que as coisas são exatamente o que são e como são. Ali eu me deparei com a realidade que não quis ver durante longos 2 anos, não porque fui insensível, mas porque não tive coragem, embora eu acredite que toda falta de coragem carregue consigo certa dose de insensibilidade.

Você já comeu hoje? - Perguntei.

- Não. - ele disse com sua voz baixa, não sei se por vergonha ou se por cansaço.

Os bombons já haviam passado, mas pedi um momento à caixa, corri à seção mais próxima e peguei 2 biscoitos, gostaria de pegar mais, gostaria de encontrar uma bebida, mas não havia tempo. Entreguei a ele, que sorrindo, abriu o saco de bombons e, mesmo contra minha vontade, me entregou um bombom em agradecimento. Ele não tinha celular, então não tenho seu contato, ele me disse seu nome o bairro em que morava, mas não me lembro. Ele tinha um rosto, uma idade, uma história e uma dor, mas também não me lembro. Incrível como podemos esquecer de dores que não são nossas.

Por que o ajudei? Não foi por caridade, não acredito nisso, acredito em justiça social. Também não fiz isso para limpar a minha mente e virar o ano com a sensação de ter feito algo bom por alguém. Jamais seria por isso. Ajudei-o porque eu sou aquele garoto. Sem todas as oportunidade, sem todos os acessos, sem todos os privilégios, somos a mesma pessoa, viemos do mesmo lugar e temos a mesma família, a mesma vizinhança e o mesmo futuro por herança.

Tudo o que sou é decorrente de todos os “sins” que tive ao longo da minha vida, tudo que ele tinha era decorrente de todos os “nãos” que a sociedade estava lhe dando até então. Não à educação, à saúde, à dignidade, à alimentação, não ao futuro e o que é justo. Não seria eu que iria dizer mais um não para ele, também sei que não seria aquele sim que iria mudar a vida dele. Mas entre o usual e o medíocre, escolhi o medíocre. Disse sim, tentei auxiliá-lo como pude, mesmo sabendo que aquilo só iria reforçar ainda mais uma cadeia de desigualdade.

Aquilo não era o que eu queria dar, tampouco era o que ele merecia, mas era o que eu podia dar, e embora isso não deva ser normal, o pouco que pude dar, para ele, foi suficiente. Ele me agradeceu, me deu um sorriso e saiu. Não o encontrei na porta do mercado ou nas ruas próximas. Ele voltou a ser um cidadão do mundo, embora não tivesse idade suficiente nem para ser cidadão de si mesmo.

Iniciei o ano sabendo que não posso morrer esse ano. Não posso morrer antes de falar que situações como essa são raras e não corriqueiras. Não posso morrer antes de cumprir com meu dever de votar na pessoa certa pra tirar esse país do mapa da fome mais uma vez. Não posso morrer antes de ver as pessoas terem direito ao mais básico da sociedade. Não posso morrer antes de ver os jovens tendo o direito de sonhar e de ter esperança. Não posso morrer antes de saber que há justiça social para aqueles que vivem há 4 anos a fome do período mais insustentável de nossa história recente. Não posso morrer antes de ver essa gente, que é a mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia, pagar por todo esse sofrimento.

Esse ano eu me formo, esse ano eu elejo um novo presidente, esse ano eu vejo meu país dar um passo pra longe desse lamaçal que estamos vivendo, esse ano eu terei mais esperança, esse ano eu terei mais motivos pra seguir. Ano passado eu morri, ano que vem eu até posso morrer, mas nesse ano eu NÃO morro! Esse ano a gente começa a vislumbrar uma saída.

Gostaria de ter dito muitas coisas para ele, gostaria de ter feito muito mais, agora, escrevendo, vejo que deveria ter dado meu contato para ele… não sei, deveria ter feito mais. Na hora não pensei em nada disso, sei que deveria, mas não pensei. O contato com o que parece intransponível é capaz de paralisar até mesmo a mais feroz das panteras.

Não sei por onde anda aquele garoto, mas espero que onde ele esteja, que encontre ou tenha alguém que o diga para seguir. Esses boy conhecem Marx, mas nós conhecemos a fome. Então espero muito que ele consiga ter força para levantar e andar, levantar e andar, levantar e andar.

E que ele saiba, mesmo sem saber, que há um pódio, que a gente vai chegar lá, e que chegaremos com a fúria da beleza do sol.

Somos maior, nos basta só sonhar e seguir.

Que ele saiba que é grande, porque ele é muito maior do que acha, do que eu acho e do que estou escrevendo.

Pedro H Ribeiro
Enviado por Pedro H Ribeiro em 09/01/2022
Código do texto: T7425085
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