O JULGAMENTO DA SENHORA

Tudo nesta história começou com um simples olhar perdido de uma pessoa que estava presa em seu inconsciente e em seu próprio umbigo, carregando a loucura, a discriminação, o ódio e a fé. Porém, esta pessoa que estou prestes a contar a história não é apenas uma cidadã...

Eu era novato na cidade onde moro, praticamente não conhecia ninguém. Era um dia de quarta-feira tedioso como os demais dias da semana e eu não encontrava nada de inspirador para uma bela crônica. Já havia dias que eu permanecia nessa ausência de inspiração. E eu estava exausto com as provas finais da faculdade, desejava com todas as forças terminar o período do curso de jornalismo, que por sinal era o último período, mas não encontrava um fato ou uma notícia que valesse alguma coisa a ponto de escrever para a redação do jornal no qual eu fazia estágio.

Naquela quarta-feira, eu estava no auge do meu estresse. Não conseguia fazer nada. Não havia dormido bem na noite anterior por preocupação em excesso. Estava cansado, com sono, estressado e saturado com meu curso. Toda vez que estou assim preciso dar uma pausa e colocar a cabeça no lugar. Então decidi me entregar aos meus desejos: comer pão de queijo. Peguei meus pãezinhos macios como algodão e fui sentar na calçada de casa a fim de me dispersar da rotina desgastante que levava.

Enquanto eu comia meus pãezinhos na calçada de casa, vi uma sombra de trás de uma janela a poucos metros de mim. Era noite e a rua estava escura, por isso não dava para ver ao certo o que era. Assustado, imaginei ser várias coisas: espíritos, demônios, assombração etc. Só me dei conta que se tratava de uma pessoa quando uma luz ao fundo iluminou o quarto a ponto de ver, do lado de fora, o que estava dentro. Era a esquisita senhora da rua.

Essa senhora era conhecida no bairro como esquisita porque mal saia de casa e quando saia era pela noite, com um saco nas costas. Ela também criava vários gatos. Tinha várias imagens de santos em todo lugar de sua casa. Cultivava todo tipo de plana em seu quintal, por isso, quando alguém precisava de alguma erva medicinal, procuravam-na. As pessoas diziam que ela era uma pessoa boa, mas não mudava o fato dela ser estranha e medonha.

O tempo passou e fazia poucos minutos que terminara de comer meus pãezinhos de queijo. O sono me pegou da calçada de casa e me levou até meu quarto. Cansado igual um condenado, fui fechar as portas do meu ninho. Neste exato momento, vi quando a estranha senhora passou com o saco volumoso nas costas. Parecia que carregava alguma coisa pesada e grande, mas naquele momento não dei tanta importância e fui dormir.

No dia seguinte, levantei bem cedo para ir à faculdade. O sol nem havia nascido ainda, mas lá já estava eu, esperando o transporte. De repente, na espera, um cheiro forte de fumo se manifestou na rua e quando procurei de onde saía aquele odor de folhas queimando, vinha a senhora novamente com o saco volumoso nas costas. Olhei discretamente, sem querer querendo, e vi que o saco que ela carregava estava cheio de não sei o quê. Fiquei encarando os passos da estranha senhora de longe, quando o ônibus chegou e tive que ir estudar. Permaneci o dia inteiro pensando na estranha senhora, com a angustiante curiosidade para descobrir o que ela carregava no saco.

Tive muitos pensamentos absurdos enquanto segurava um livro sobre a mesa da biblioteca. — Será que a estranha senhora carregava um menino morto no saco? Ou será que ela matou alguém e foi enterrá-lo naquela noite? Não, não pode ser, pois ela voltou com o saco cheio, da mesma forma que saiu de sua casa. Foram tantos julgamentos negativos a respeito da estranha senhora naquela manhã, que não consegui me concentrar na leitura do livro.

Voltei da faculdade umas horas. Fiz os afazeres de casa, comi, descansei, organizei uns papéis e quando percebi já era noite. Botei uns pãezinhos de queijo para assar e café para passar. Depois de tudo feito, peguei os pãezinhos, o café coado e fui sentar na calçada de casa novamente. Estava tudo uma delícia, até a noite, exceto o cheiro forte de fumo que me fez relembrar do saco volumoso que a estranha senhora carregava nas costas.

Com a curiosidade para saber o que a estranha senhora carregava no saco, decidi que não arredava o pé da calçada enquanto ela não passasse com o saco volumoso nas costas. Mas depois de algumas horas, o sono me maltratava e tive que ir me jogar na cama. — Será que ela observa a movimentação da rua pela greta da janela? — perguntei-me, enquanto me levantava da calçada. Estava demorando muito e podia-se dizer que era madrugada.

Quando fui fechar as portas, vi a estranha senhora passando com o saco volumoso nas costas. — Mas será o benedito! — exclamei. Agoniado, saí para a rua para tentar perguntar o que havia no saco, mas saí atrasado. E mais uma vez o bafo de fumo era sua marca de mistério, apodrecendo as ruas do bairro com aquele maldito cheiro de defunto. — Outra noite que não conseguirei dormir porque ainda não descobri o que a estranha senhora carrega no saco volumoso — disse para mim, enquanto voltava para dentro de casa.

No dia seguinte, fiquei enfurnado na sala de aula, com os olhos incendiando de sono, mal conseguia me manter atento ao assunto ministrado pelo professor. Uma das poucas coisas que consegui capitar foi quando ele pediu para que construíssemos uma crônica relatando a história de um personagem do lugar de onde cada um mora. Então tive a ideia de usar o trabalho da faculdade como desculpa para conhecer melhor a história da estranha senhora do saco volumoso. — Agora eu irei saber o que a aquela mulher carrega no saco — gritei, todo animado. Aproveitei o final de semana que chegou muito rápido e fui entrevistá-la. No sábado, resolvi conversar com ela.

Queria conhecê-la, saber um pouco mais. Tudo que eu ouvira a respeito dela foi através de outras pessoas e não daquela estranha mulher. Todos os julgamentos que eu fazia dela se baseavam no que os outros me diziam, não era uma ideia totalmente minha, por isso eu sentia a necessidade de conhecê-la. Com meu caderninho de anotações, assim eu fui até a sua residência

— Toc, toc, toc — bati meus dedos na porta. — O cheiro de fumo é muito mais forte daqui — disse para mim.

Ela saiu do fundo da casa sem o saco volumoso nas costas e com uma voz medonha, exclamou:

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Eu estava todo nervoso de medo e de curiosidade, então disse:

— Minha senhora, bom dia.

Ela me olhava com um olhar de bicho brabo quando está com fome e respondeu-me, questionando meu bom dia:

— Bom dia? O que você quer dizer? Quer que eu tenha um bom dia ou quer dizer que o dia está bom? Neste momento eu não sei se o dia está bom, pergunte-me mais tarde!

— Posso fazer uma entrevista com a senhora? — perguntei.

— Suas atitudes falam tão alto que eu não consigo ouvir o que você quer dizer? — ela respondeu com uma resposta fora do contexto.

Em alguns momentos pensei que ela estava tomada pelo coisa-ruim. Ela respondia as perguntas que eu fazia com respostas delirantes, sem sentidos e estranhas. — Será que ela me responderia o motivo de sair tarde da noite com um saco nas costas? — questionei-me. Este era o objetivo da entrevista: saber o que ela carregava no saco. Então, subitamente, fui direto ao que queria descobrir:

— Minha senhora, já te vi várias vezes com um saco volumoso nas costas, o que tanto faz a noite com ele?

— Sacos, sacolas, bolsas, bocetas... eu não ando com saco nas costas. Eu vou passear com minhas filhas.

Talvez esse fosse seu último argumento: estranho, sem lógica e sem respostas para minhas dúvidas. Saí de lá sem saber o que era alegria ou tristeza, longe de imaginar os problemas existentes na vida dela. Saí de lá apenas com a confirmação do que os outros me contavam a seu respeito, que ela era realmente maluca. — O julgamento que as pessoas faziam dela estava certo, eu que fui doido em querer entrevistá-la — gritei dentro de minha cabeça.

Quando eu saía a poucos metros de onde estava, vi uma mocinha que chegava ali e resolvi perguntar quais problemas aquela senhora guardava da vida:

— Olá, menina, poderia me explicar por que essa senhora é tão solitária?

— Rapaz, acho melhor você perguntar a minha tia que mora do outro lado da rua.

Ainda com a curiosidade para saber mais sobre aquela senhora, fui até lá:

— Donde casa!

Alguém sai à porta:

— Bom dia, que posso ajudar?

— Você é filha de dona Pureza?

— Sou, sim.

— É porque estou fazendo um trabalho da faculdade e resolvi entrevistar sua mãe, mas ela não respondeu minhas perguntas.

— Entre, vamos conversa melhor lá dentro.

Sentei em uma cadeira de plástico branco, mas que estava encardida devido ao tempo de uso e provavelmente sem limpeza. A filha da senhora sentou em outra cadeira que estava menos encardida do que a minha e começou a falar:

— Meu filho, não gosto muito de tocar nesse assunto, mas vou lhe contar. Eu era criança quando minha mãe começou a ficar doente. Ela vivia uma vida sofrida com meu pai toda vez que ele chegava bêbado em casa. Ele batia nela com um cipó, parecia que estava adestrando um animal. Eu e meus irmãos ficávamos no quarto para não ver o estrago que ele fazia nela toda vez que chegava com o rabo cheio de cachaça em casa.. Meus irmãos não podiam fazer nada, nem entravam na briga. Um deles perdeu o olho esquerdo, uma vez, quando foi tentar fazer alguma coisa. A única coisa que podíamos fazer era chorar e em silêncio.

— Mas o que levou ela ficar daquele jeito, saindo à noite com um saco volumoso nas costas? — interrompi suas falas.

— Ali foi uma das surras que ela levou quando estava gravida. Teve a filha morta de tanta pancada que meu pai deu nela. Sofreu um aborto por causa dele e por isso ficou doida varrida. Ele hoje carrega a culpa nas costas quando ela tem essas crises tarde da noite e quando ela saí às ruas, levando um saco de roupa que ela diz ser da comadre que já faleceu faz uns dez anos.

— Meu Deus! — exclamei.

— É, meu filho, as pessoas tem mania de julgar os outros sem saber das coisas.

— Estou em choque! Essa história é real mesmo?

— Não menti em nada.

— Nossa, pesado! Tudo bem se eu publicar essa história no jornal que trabalho como estagiário?

— Sim.

— Ok. Obrigado por sua atenção e tenha um ótimo dia.

— Disponha, se precisar, estou aqui. Tenha um ótimo dia também.

Levantei-me da cadeira e saí. Andei até a minha casa que ficava a contáveis metros dali. E durante o caminho eu fui pensando nas histórias que ouvi a respeito daquela senhora. Histórias absurdas, invenções da maldade humana. Senti remorso dentro de mim por ter acreditado nelas em algum momento. Senti culpa por ter julgado aquela pobre mulher, vítima da violência de uma pessoa que deveria amá-la, abraçá-la, cuidar dela, protegê-la. Senti tristeza por saber que participei de seu julgamento. E mais ainda, senti angústia quando percebi o quanto é fácil julgarmos uns aos outros sem antes conhecer suas histórias, suas dores, seus sofrimentos, seus traumas do passado.

Gleison da Silva Santos
Enviado por Gleison da Silva Santos em 17/11/2021
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