Perdi o sono

Dormi o cansaço do dia, embalada pela fome. Uma benção dormir e enganar o vazio, que me

devora faz esquecer o olhar inocente de minha filha que dormiu chorando pedindo pão.

A fome dói e grita no meu ouvido a dela.. Diante da injustiça que assola - amanhã encontro

trabalho, preciso confiar. Mais um dia de busca e de negativas. Qualquer coisa serve, uma trouxa de

roupas – que me dê o sabão e o tanque e um pouco de arroz, com sorte até um trocado para trazer

pão ou leite para alegrar o coração de Ninha. o sorriso dela, me mantém caminhando, mas o brilho

vem se apagando dos olhos dela. Não me reconheço no caco de espelho, uma sombra que um dia

fui. Tempo que o salário me emprestava dignidade, que era promessa de sonho,quando minha filha

também tinha coleguinhas na escola e a merenda era a melhor parte! Mas também aprendeu a ler –

queria ser professora, ensinava para a boneca que ganhou na igreja. Vida sem muito horizonte,

apenas sobrevive, às vezes damos graças por terminar o dia vivas, quem sabe reclamo por mais um

dia dessa sina? E a hora passa em gotas da goteira no telhado parece mais longa essa noite. Por que

acordei? Dormindo não penso, não tenho fome, não adivinho a dela. Tomo água , e o tempo passa.

D. Zenaide me chamou para fazer faxina, arrumo a Ninha, levo para escola, tenho farinha para um

engrossado com água e um pouco de açúcar, também engano o bucho e torço que D. Zenaide

ofereça lanche. A chuva aumentou. O barraco resiste bravamente. Esfriou, O vento passa pelas

frestas, abraço Ninha esquento eu e ela, ela parece agradecer e se aconchega mais. O sono vence

mais uma vez. Amanhã, será melhor. Quem sabe outra amiga de D. Zenaide tem mais roupa para

passar ou faxina. Ô vida fudida! Não descanso pensando como sobreviver um pouco mais... Será

que vale? Vale! Olho o sono dela e prometo tentar mais! Não pediu para estar aqui. Na desgraceira

que nem eu me mantenho. A chuva parou! O velho relógio segue seu trilho. Hora de acordar Ninha

para escola. Faço o engrossado, pelo menos com carinho, para compensar a simplicidade do

desjejum. Na ida peço ao Sr.Joaquim uma banana despencada do mercadinho, aí completa o

desjejum dela se Deus ajudar talvez sejam duas bananas e dê para mim.Cheguei na casa de D.

Zenaide. O almoço é por lá . Ninha almoça na escola e depois vai para casa da vizinha e me espera.

Sabe que precisa se comportar senão D. Maria não cuida dela para eu sair e trabalhar. É uma

senhora que tem idade de minha mãe que vive em Ressaquinha com meus 6 irmãos. Vida custosa.

Mais alguém que sobrevive. Fácil, num é! Quando vim prá cá em BH buscava um vida melhor,

sonhava, mas aprendi que pobre não pode sonhar. Sonhar custa din-din. Vixe que mundaréu de

janela e vidro pra limpar! Depois roupa para passar. camisas do Doutor. Almoço engoli olhando

para a louça, mas feliz - D. Zenaide arrumou duas marmitas para eu levar para casa. A noite de

hoje não teria fome no barraco. E amanhã Deus provê! Já quase anoitece. acendo a única lâmpada e

vejo Ninha comer satisfeita, também como louvando a comida. Depois é pensar: Que será amanhã?