Uma estátua "sexy"

 

 

      1. O cronista é, com certeza, um cara de muita sorte. Observem. Ele não deixa de ter à sua disposição um assunto para a sua crônica. E ainda é insaciável, pois, vive procurando sobre o que escrever, do nascer ao pôr do sol; e até de madrugada. É  uma indomável vontade de dizer alguma coisa a mais. De não perder o bonde da história. A crônica é agora.

       2. O cronista escreve sobre religião, polícia, política, esporte, nascimentos

 e até sobre acontecimentos fúnebres. Escreve sobre tudo. Mas, peraí: deve ter textos simples e curtos. E estilo com as "três virtudes" aconselhadas pelo filósofo

Michel de Montaigne (1533-1592): "Clareza, clareza, clareza".

      3. Uma estrela esquecida; um raio que fulmina um boi pastando; um beijo ousado entre amantes; uma troca de tapas num bar ou numa esquina; o voo de um gavião ou de  uma rolinha, e muitas outras coisas ajudam o cronista escrever sua página. 

     Vejam. Dia desses, escrevi sobre o gato de minha vizinha, um galante angorá. Poucos observam o Mimi. Ninguém curte sua maneira elegante de deitar e o seu jeito sutil de  levantar. Ninguém, não, o cronista viu e fez a crônica. 

     4. Outro dia, escrevi sobre pombos "fazendo amor" no telhado que, da minha janela, vejo a qualquer hora. Eles, num determinado momento, parecendo combinado, se encontram e trocam bicadas carinhosas: são as preliminares... Um finge fugir do outro. De repente, o macho salta sobre a fêmea com um equilíbrio e precisão olímpico. E quando o orgasmo chega, suas asinhas trazeiras farfalham... Em seguida, ele parte, deixando a pomba com saudade... mas saciada... 

     5. Escrevi sobre os periquitinhos de minha rua, que tanto encantam Ivone, minha mulher.  Eles chegam ao cair da tarde. São centenas. Voam, voam, voam e quando o sol vai se apagando, eles se acomodam nas amendoeiras frondosas que enfeitam meu quarteirão, para o pernoite seguro. Ivone fica a fitá-los, demoradamente,  como a lhes dizer: "Boa noite! amigos".

     6. Uma notícia aparentemente insignificante, perdida nas folhas de uma gazeta qualquer, também pode ajudar o cronista. É o meu caso, hoje. Comento uma notícia vinda da Itália sobre uma estátua seminua, repito, seminua, que a imprensa mundial chamou de "Estátua sexy". Trata-se da estátua "La Spingolatrice di Sapri" (a Respiradora de Sapri) erguida na cidade de Sapri, região de Salermo. Um bom número de saprianos rejeitou a estátua. Acharam-na escandalosa. O quê?

     7. Quem foi "La Spingolatrice di Sapri" que tanta repulsa provocou nos moradores da pequena cidade italiana, porque, no bronze, apareceu seminua. Revolta exatamente num país de belas estátuas nuas homenageando respeitáveis figuras mitológicas. Na Itália, estátuas nuas abundam, né verdade? 

     Na bela capital da Toscana, a encantadora Florença, na sua principal praça, a Piazza Della Signoria, você é recebido por uma enorme estátua de Netuno (Posseidon) completamente nu, chamando a atenção dos turistas abelhudos seus orgãos sexuais literalmente  expostos.  Assim é, também, a bela estátua de Davi, a fantástica escultura de Michelangelo, hoje guardada no interior da Galeria Dell'Accademia , em Firense. 

     8. Afinal, quem foi La Spingolatrice di Sapri que, na estátua seminua, vem, como disse, provocando tanto zum-zum-zum entre os saprianos? A estátua é uma homenagem do povo de Sapri a uma camponesa guerreira que figura num poema inspirado num movimento histórico italiano, escrito em 1857 por um obscuro vate chamado Luigi Mercantina . 

      9. Assim o jornal descreve a escultura condenada pelos saprianos: "A estátua exibe a camponesa com um vestido sem ombros, tendo um dos braços sobre o colo, e simula a brisa do mar batendo no corpo da mulher, de forma que a roupa fica mais justa - delineando também o contorno das nádegas". 

     Ora, senhores, a homenageada não está nua. Suas nádegas, pelo que se pode ver, deveriam ser aplaudidas e mantidas em exposição permanente. Não concordo, pois, com o pessoal de Sapri. A Europa respeita suas estátuas. Não é novidade.

     10. Todos sabemos que, no Brasil, é diferente. O desrespeito às nossas estátuas erguidas em praça pública é total. Dou dois exemplos . Um em Salvador e o outro no Rio de Janeiro.

     Na Bahia, já profanaram, repetidas vezes, a estátua do poeta Vinicius de Moraes, na praia de Itapoã; sim, Vinicius, o compositor de "Tarde em Itapoã"; e no Rio de Janeiro, a estátua de Carlos Drummond de Andrade, no calçadão de Copacabana, teve seu óculos arrancados ene vezes. Óculos que o ajudaram a escrever belíssimas crônicas e imortais poemas.   

  

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 30/10/2021
Reeditado em 01/11/2021
Código do texto: T7374794
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