Qualquer semelhança é mera falta de criatividade

Sem mais distinguir as barreiras entre realidade e delírio, estou olhando há alguns longos minutos (ou horas) pra um comprimido de paracetamol esperando silentemente ser tomado. “Mas é óbvio que o comprimido está em silêncio”, você se questiona. Não, mais nada nesse mundo é óbvio. Precisamos reafirmá-lo sempre. E, dado o meu humilhante estado pós-surra, posso muito bem ouvir ou conversar com objetos (supostamente) inanimados. Falo com tranquilidade. Agorinha estava eu em uma conversa imaginária com pessoas que eu não conheço discutindo acerca da temática, muito recorrente em tempos de isolamento social, sobre conversar sozinho. Primeiro: será isso uma metalinguagem? Porque eu estava conversando sozinha sobre conversar sozinha. Fica aí o questionamento no ar. Meu cérebro foi violentamente atingido pela dor que percorre todas as minhas células, não faço ideia do que estou falando. E nem com quem. Voltando ao assunto, eu não converso sozinha. Não cheguei ao ponto de verbalizar todas as cenas que se passam em minha cabeça. Isto é, eu converso mentalmente. Muito melhor do que você, leitor, que está agora se perguntando em voz alta como veio parar aqui. Por favor, não saia. Cansei de pessoas imaginárias. (E agora estou me desculpando com minhas pessoinhas imaginárias). Enfim.

Hoje, pela manhã, após tomar um banho bem cedo na falível intenção de melhorar e tirar de mim todo o fracasso acumulado e espancamento vivenciado, vi que não mudou nada. Estou aqui, limpa, mas sigo derrotada. Falei com Victtor, meu amigo, sobre um possível sumiço meu nas aulas. Zero condições de enfrentar com a mínima dignidade o que é desprovido de qualquer dignidade: o EAD. Ele, visivelmente destruído e acabado emocionalmente, deu um “bom dia” triste e sombrio, seguido de “amiga, eu também levei uma surra”. E lá ficamos, surrados, rindo sobre a situação. Mas sem muito esforço, tudo dói. Falei que estava com meu paracetamol ali esperando ser tomado, ele riu e disse que já tinha se dopado. Ligeiramente conversamos sobre qual a melhor droga para tamanha dor. Após intenso raciocínio, seriamente limitado devido às porradas recebidas, chegamos à óbvia conclusão ( mas nada é tão óbvio que não precisa ser dito) de que nada vai diminuir essa dor aí que você, cidadão brasileiro, está sentindo. O fardo de ser jovem, ser jovem no Brasil, ser jovem na pandemia, ser jovem sob o desgoverno do que insistem em chamar de “Presidente da República Federativa do Brasil”, ser de qualquer idade no Brasil - carregando a árdua tarefa de ser testemunha de fatos históricos desgraçadamente tenebrosos - é, no mínimo, uma grande surra seguida de constantes humilhações e cusparadas na cara. É uma escova de dentes quebrada na boca, é um dedo no olho, é um pé na quina de um móvel qualquer, é pior do que tudo isso: é um Bolsonaro por dolorosos anos.

Falando da vacina, criminosamente negada pela criatura do Planalto, felizmente tomamos a segunda dose ontem. Quase no chão, ainda olhando meu paracetamol, sentindo pontadas em lugares que eu nem sabia que existiam, é indiscutivelmente muito mais glória do que dor. Dor mesmo é ter deixado mais de 600 mil pessoas morrerem de uma doença que já tinha vacina.

Anita Maria
Enviado por Anita Maria em 27/10/2021
Reeditado em 27/10/2021
Código do texto: T7372483
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