Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra

Eu lembro que, quando era criança, ao ouvir que Drummond escreveu que “havia uma pedra no meio do caminho”, um de seus poemas mais famosos, eu indignadamente questionei “se escrevem sobre uma pedra no meio do caminho, eu também posso fazer poesia”. Perdoem a criança, leitores, perdoem. Eu achava, como muitos acham até hoje, que a poesia era para os grandes escritores. Apenas. Mas a poesia que é grande. E quem quiser ser, que seja. Não que isso signifique algo, não que você seja bom ou que vá ganhar dinheiro. Talvez daqui a 50 anos, se você for um gênio incompreendido, será reconhecido. Mas provavelmente não. E, no final das contas, que diferença isso faz? A única coisa que eu sou desencanada, na vida, é com isso, pois lido com o fato de saber que não sei de nada. Ainda bem. E gosto de escrever assim como gosto de gostar de escrever. Às vezes eu tinha vontade, ainda pequena, de falar sobre as coisas do dia a dia, da vida, de uma tarde qualquer. E aí, na escola, ouvi sobre a tal pedra no caminho. Revoltadíssima. Eu pensava se tropeçava na pedra, se eu retirava a pedra, se eu atirava a pedra para longe, se eu chutava a pedra ou se eu contemplava a pedra no meio do meu caminho. Eu também nunca esqueci esse acontecimento. Sempre gostei, não de graça, daquilo que me colocava em dúvida, daquilo que eu não entendia completamente, mas que profundamente admirava. Na poesia ou em qualquer outra forma de arte, não se pode dizer que domina no entendimento. Ninguém sabe. O artista não faz arte, ele permite que ela se faça por meio dele. É o que falta em mim, eu me permito sentir e não me permito viver. Coisa de quem sofre e parece que gosta. No meu caso, eu não sei. De nada, nunca. Mas posso dizer, pelo menos dentro do momento em que estava escrevendo, que minhas retinas também fatigadas nunca esquecerão da tal pedra ou do homem que morreu de fome na rua, que morreu de fome em plena rua, que estava morto no meio do caminho, que morreu atrapalhando o tráfego. A repetição, presente na crônica do homem morto e na poesia de Drummond, acumulam camadas epifânicas que grudam na memória das retinas, por mais exauridas que elas estejam. Que grudam na mente, na infância, na minha antiga escola, no seu trajeto, na pedra que eu encontrei, guardada até hoje.

Anita Maria
Enviado por Anita Maria em 04/10/2021
Código do texto: T7356172
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.