O VESTIDO DE TAFETÁ

O VESTIDO DE TAFETÁ

Em 1959, ainda na primeira série ginasial, ir a escola era uma festa diária. Acordava cedo e as sete da matina começavam as aulas. Cursar o ginásio era uma grande novidade. Freqüentar o Instituto Estadual de Educação Martim Afonso, em São Vicente, após aprovação em um difícil exame de admissão ao ginásio, era motivo de orgulho e apreensão. Orgulho por estar matriculado em uma excelente escola e apreensão por saber que não seria fácil ser aprovado para passar de ano. Era uma época bem diferente de hoje. As melhores escolas da nossa região eram o Instituto de educação Canadá em Santos e o Martim Afonso, em São Vicente. A educação era mais reverenciada, os professores eram respeitados como autoridades na sociedade e davam aulas de terno ou jaleco branco. Tínhamos aulas de Latim com o professor Esmanhoto, um camarada alto e magro, mineiro de Carangola, que tinha mãos magras e grandes e vivia esfregando uma na outra. Careca, usava óculos de lentes redondas e parecia um padre. Nas aulas de Latim, o livro de estudos mostrava textos como “O rapto das Sabinas”, “Rômulo et Remo” e declinações da nossa língua mãe tipo “qui, quae, quod”. Como era difícil! Mas aos poucos íamos aprendendo e compreendíamos aquele enigma chamado Latim. Latim era complicado, tinha provas escritas e orais, Esmanhoto era exigente. A gente sofria, mas acabava por saber um pouquinho de Latim. O professor de Trabalhos Manuais chamava-se Mário, usava uns óculos de grossas lentes e sempre atendia com gentileza os alunos. Nas aulas de Trabalhos Manuais eram distribuídas umas caixinhas metálicas quadradas de uns quinze centímetros de lado com dois centímetros de altura preenchidas com massa marrom clara. Utilizando uma espátula de madeira,que cada aluno havia feito a partir de um pedaço de madeira e orientado por Mário, começávamos a esculpir figuras dessa massa. Lembro que um dos primeiros trabalhos foi reproduzir uma mão humana, assentada sobre a mesa. Mário calmamente orientava como fazer e mostrava com sua mão como os detalhes deviam ser tratados. Logo se destacavam os alunos que possuíam habilidades e seus trabalhos ficavam bonitos, alguns até pareciam uma escultura de artistas de verdade. Assim os alunos aprendiam as dificuldades de fazer arte e dar valor aos artistas e à própria Arte. Pelo menos comigo foi assim. Não lembro, mas as provas de Trabalhos Manuais eram fáceis de modo que todos eram aprovados. Mas levavam consigo outra visão de Arte. Também tínhamos aulas de Canto Orfeônico, ministradas pelo professor Cruz, um senhor baixinho e gordo de cabelos brancos cujo paletó não abotoava impedido pela barriga. Entre pautas e solfejos aprendi que não tinha a mínima tendência para a música. Mas ficou um grande amor por essa arte. A gente cantava diversas canções, entre elas me lembro de “A Malga de Barro” (“na malga de barro há verde e fresquinho, ai que vinho, ai que sabor...”). A figura mais icônica era a professora Laurentina, nem sei mais como descrevê-la. Dava aula de salto alto, mas não parecia estar acostumada com isso e andava transmitindo a sensação que ia cair a qualquer momento. Ficava circulando entre as fileiras das carteiras dos alunos, não parava de falar, muitas vezes aos berros. Usava um cabelo curto, mas sempre despenteado parecendo um ninho de pássaros. Com uma maquiagem pesada, lábios brilhantes de batom, uma sexta feira Laurentina veio dar suas aulas vestida para uma festa, com um lindo vestido de tafetá azul marinho, toda chique. Quando entrou na sala de aula ecoou um “ohhhh!!”, ela já berrou para ficarmos calados e explicou que da escola seguiria para uma festa de casamento. Ocorre que, pouco antes da professora entrar em sala, um gaiato pintou o assento a cadeira da Laurentina com giz, deixando todo branco, em seguida colocou a cadeira bem encostada na mesa, de modo que não se via o assento. Laurentina puxou a cadeira, sentou, fez a chamada e em seguida deu uma bronca geral para ficarmos em silêncio. Levantou-se e começou a escrever na lousa, de costas para os alunos. Foi impossível segurar o riso da galera ao ver a professora com a bunda toda branca. Sem saber qual o motivo de tanto alarido, Laurentina danou a berrar para fazermos silêncio, até ver o assento da cadeira. Torceu-se toda e constatou que seu lindo vestido estava manchado de giz. Xingou, esbravejou dizendo que devíamos fazer aquilo com nossas mães e, aos berros, acabou com aula. Recolheu com ódio seus livros e saiu da sala de aula pisando duro. Com a bunda toda branca.

Paulo Miorim 21/09/2021

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 21/09/2021
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