O show vai continuar

Na última terça, depois de um intervalo de quase 90 dias, tomei a segunda dose da vacina contra o novo coronavírus, eu esperei muito por esse momento, e esperei muitas coisas sobre ele, achei que fosse chorar, que fosse sentir alívio, achei que fosse voltar pra casa percebendo o quão linda e bela a vida é, não sei, esperei algo meio James Cameron, mas sendo profundamente sincero, não senti absolutamente nada naquele momento. Uma vez me falaram que pais de recém-nascidos não têm tempo para contemplar seus filhos, porque estão ocupados demais tentando não fazê-los morrer. Primeiro você faz com que aquele ser sobreviva às primeiras semanas, depois disso você aprende a amá-lo. Diria que por aqui ocorreu o mesmo, a primeira dose teve um impacto forte em mim, me vacinei enquanto professor, numa universidade pública, pelo SUS e poucas semanas após atingirmos a infeliz marca de 500 mil mortos, foi uma confluência de sentimentos.

Mas naquele momento, era só eu, alguns amigos profissionais da educação foram vacinados, mas a grande massa, só começaria a ser vacinada dali a dois meses. O modo sobrevivência surge aí, eu estou há dois anos sem ver muitos amigos queridos, a semana de vacinação deles era também a minha, eu sabia de cabeça o dia de cada um, mandava mensagem para saber se estavam bem, se queriam companhia no posto, se estavam sentindo algum efeito, etc e etc. Era amor? Sim, mas acima de tudo, era o modo de sobrevivência. Depois disso, veio a vacinação dos adoles; eu tenho alunos adolescentes. Expectativa no alto. De repente, acabam as doses, vacinação suspensa. Os adoles já não me aguentam mais enviando mensagem pra falar da vacina. Mais uma semana, agora a vacinação em outra cidade chegou nos amigos que moram lá, e de repente os amigos de 90 dias antes voltaram a se vacinar. Repetição do ciclo. As mensagens pra os amigos da vacinação de agosto voltam a rodar. “Amiga, sua segunda dose é quando mesmo? Quer que eu vá?”.

E assim chegou o meu dia, no auge do modo sobrevivência, sem tempo pra sentir. A agulha entrou e saiu, o líquido já não estava mais lá. Fiz uma foto. Postei. Chico Buarque ao fundo e voltei pra casa. “Só isso?”. Pensei, mas não elaborei. Veio aos poucos. Em algum lugar li que a taxa de óbitos estava abaixo de 600 pela primeira vez desde o início da pandemia, depois li que a taxa de casos estava caindo e que o cinturão de imunizados crescia. Peguei o celular e digitei para uma amiga “Acho que daqui a algumas semanas podemos sair. Ir passear no Centro?”. O modo sobrevivência começou a se desfazer.

Ao longo desses dois anos, a pandemia retirou de mim muitos momentos, retirou do meu convívio muitas pessoas e, infelizmente, roubou a vida e a paz de muitas pessoas que eu amo, mas o que ela mais tirou de mim foi o direito de planejar. Não falo de sonhar, sonhos estão numa outra esfera, mas falo de planejar, de executar afetos, momentos e criar. Sempre me descrevi como um cidadão do mundo, e estar privado do mundo, pra mim, foi uma das piores coisas que me ocorreu, estando fora da rua, eu somente parei de criar planos. Agora, depois de um ano, estou criando planos novamente, dentro do que nos cabe, planejo reencontrar amigos, retornar aos parques, me reconectar ao Centro, planejo me reencontrar em frente à Candelária e comentar quantas coisas aconteceram. Planos. Finalmente.

Nos dias mais difíceis, mais incertos e mais tristes, eu ouvi “O show tem que continuar” do Fundo do Quintal, me segurava o tanto quanto era possível no:

“Mas iremos achar o tom

um acorde com lindo som e fazer com que fique bom

outra vez o nosso cantar.

E a gente vai ser feliz

olha nós outra vez no ar

o show tem que continuar”

Hoje o meu adole favorito se vacinou e eu chorei. Chorei de emoção, de felicidade, de alegria. Chorei por tudo. Chorei porque lembrei que meus amigos foram vacinados, lembrei porque minha família também foi. Chorei porque daqui a alguns meses vou fazer fotos de formando com meus amigos. Chorei porque posso planejar novamente. Chorei porque embora saiba que a vida não será fácil a partir de agora, a gente vai ser feliz, sim.

Nós iremos até Paris

arrasar no Olímpia

o show tem que continuar

Olha o povo pedindo bis

os ingressos vão se esgotar

o show tem que continuar

Todo mundo que hoje diz: acabou

vai se admirar

nosso amor vai continuar!

Pedro H Ribeiro
Enviado por Pedro H Ribeiro em 18/09/2021
Código do texto: T7344791
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