O DIA EM QUE O PRESIDENTE MORREU

24 de agosto, terça-feira. O menino de oito anos não sabia ainda que o presidente do país estava morto. Normalmente ele ia para a escola a pé, com seu irmão mais velho. Distância equivalente a seis quilômetros. No meio do caminho, num campo à beira do rio, três primos completavam o grupo de estudantes com o mesmo destino.

Mas naquele dia o irmão adoeceu e o menino foi sozinho até o ponto de encontro. Chegou mais cedo e subiu num cupinzeiro para monitorar a aproximação dos primos e gritar seus nomes. Foi quando sentiu a primeira cutucada no calcanhar. Acostumado a tropeçar em pedras e cascalhos na roça, não deu bola. Veio a segunda cutucada. Na terceira vez resolveu olhar para baixo e foi aí que o mundo caiu. Era uma cobra. Ela queria um lugar privilegiado para se esquentar ao sol e decidiu expulsar o intruso.

Conclusão imediata: a cobra picou o pé do garoto e ele ia morrer. Sozinho, no meio do mato, sem socorro e sem extrema-unção. Com o pé cheio de arranhões, qualquer um deles podia ser confundido com uma picada. E ele começou a se despedir mentalmente dos pais e irmãos. Era o fim.

Mas, aí, o pequenino notou uma coisa curiosa: as duas extremidades do réptil eram iguais. Cabeça e rabo. Criado na roça, ele sabia que a chamada cobra-de-duas cabeças não era venenosa. Louvado seja Deus! E começou a ressuscitar antes mesmo de morrer. Refeito, correu atrás da bichinha mas ela, esperta, percebendo a desvantagem, fugiu entre o matagal, ligeira como um raio.

De qualquer forma, a caminhada até a cidade foi inútil. Na manhã daquele dia o presidente da República meteu um tiro no coração e a escola, de luto, fechou as portas.

Lembro-me muito bem de tudo isso porque o menino era eu e o suicida era Getúlio Vargas. E hoje também, embora não seja terça-feira, é 24 de agosto. Dia em que o presidente morreu e eu renasci. Não sei se a troca foi justa. Mas eu fiquei em débito com o destino. Se, naquele dia, ele tivesse colocado uma cascavel em cima do cupinzeiro, em vez de uma inofensiva cobra-de-duas cabeças, eu não teria contado esta história para o meu neto, que a recontou para a professora, como dever de casa.

E eu fiquei muito feliz quando ele acreditou no meu relato. Normalmente os adultos não acreditam quando, embalado por uma ou duas cervejas e com tantos quilômetros rodados, eu cutuco minha memória, ativando as lembranças da infância vivida no interior de Minas. Com aquele sorriso de meia boca, os amigos acham que estou caducando, principalmente quando falo do meu romance com a Cláudia Cardinale. Mas, se meu neto acreditou, com a pureza que só as crianças têm, é porque a história de fato aconteceu, nos mínimos detalhes. Ainda que eu a tivesse inventado, ela passa a ter a presunção da verdade e me autoriza a desvirtuar os versos do Poeta:

“No meio do caminho tinha uma...cobra.

Tinha uma cobra no meio do caminho.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma cobra...

...De duas cabeças.”

Pereirinha
Enviado por Pereirinha em 24/08/2021
Reeditado em 16/08/2022
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